Por: Pedro Moreira
0. “Declaração de intenção”
Nesta praxe, quase litúrgica, ao longo dos últimos anos, eis o momento de lançar um olhar retrospetivo, mesmo que de relance, sobre o que tem sido o ano que se aproxima do seu termo para, depois – numa outra crónica (p’ra semana, espero) – perscrutar, em termos de perspetivas, o ano que chega, 2020, como sempre, em forma de crónica, em todo o caso, com a responsabilidade e o sentido do dever cívico que uma cidadania presente e ativa impõe, o que, não facilitando a empreitada, torna-a, contudo, mais tratável e, até certo ponto, oportuno, útil e algo aprazível.
Procurarei cingir-me, sobretudo, a factos, mais do que às figuras, e terei o cuidado de não adotar nenhuma criteriosidade, em particular, na escolha e ordenação dos mesmos, a não ser a de construir uma narrativa com os mesmos, cronicando, claro; sem a mínima pretensão de grandes tiradas técnico-filosóficas – nem políticas -, passando sempre pelo crivo dinâmico das “três peneiras.”
Para além disso, terei em devida conta a Christmas season, em que nos encontramos e que, como bem canta Cliff Richard, “a time for rejoicing in all that we see,” este limbo morno e colorido de uma estranha cumplicidade cósmica, das pessoas e das coisas, de luz e paz que se irradiam de lá dos confins de Belém de Éfrata, há dois mil anos, criando um ambiente envolvente que congrega tudo e todos para mais tolerância, mais fraternidade e solidariedade; tempo do bem e do bom, que se emana do ar, se sente em casa e se entende e entranha nas conversas, das mais corriqueiras às mais formais, seja na rua entre os amigos, colegas de trabalho, velhos conhecidos, estranhos simpáticos, amores antigos ou até adversários de ocasião; não é tempo para hostilidades nem para antagonismos ou protagonismos exagerados, ou mesmo inimizades, porque – para os cristãos, ao menos – o divino se fez e faz humano, elevando este à sua (do divino) semelhança e deixa todos os homens nesse estado, nem sempre compreensível, às vezes, desconfortável, até, de irmandade e fraternidade misteriosa e real.
Como sempre, por estas alturas, parece que o ano passou num ápice e, mesmo assim, inúmeros são os assuntos e temas a destacar numa breve crónica, como esta, o que me deixa na condição, algo incómoda, de, eventualmente, sem querer, deixar passar um ou outro tópico que, na opinião de muita gente, poderia – justamente – merecer aqui o destaque, em vez de alguns outros que escolhi. No entanto, estou certo, esses tópicos, aqui não referenciados, sê-lo-ão, certamente, por alguns outros cronistas e/ou analistas na retrospetiva/avaliação do ano 2019.
Morna, “nos orguliu”
Enquanto concluo esta parte da crónica, algures nesta Cidade Capital de todos nós – ao que se diz, fora do itinerário histórico da Morna nacional –, neste finalzinho da tarde de domingo, a linha do horizonte aí no fundo deste marzão de “Kebra Kanela” é o azul do Atlântico salpicado, com as espumas brancas das ondas marulhentas, e, por feliz coincidência ou estranha sintonia, vou me deliciando com a morna “Kaminhu di Mar” interpretado, como só, Ildo Lobo sabe.
A Morna, género musical genuinamente cabo-verdiano, foi inscrita na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (LRPCIH) pela UNESCO, no passado dia 11 de dezembro, durante a XIV Reunião do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial em Bogotá, Colômbia.
Parabéns a Cabo Verde e a todos os cabo-verdianos, nas ilhas e nas diásporas! Honra aos nossos poetas, criadores, trovadores, músicos, estudiosos e investigadores da morna! Good job, Ministério da Cultura e Indústria Criativa (MCIC) e todos os que trabalharam no processo de candidatura! Não existe coisa melhor – satisfação boa, sem preço nem galardão – do que o sentimento do trabalho bem feito e resultados/metas atingidos; do dever cumprido!
Annus Politicus
Não tem sido, para Cabo Verde, um grande ano político. As grandes questões nacionais continuam em banho-maria dividindo os nossos atores políticos, ariscos a grandes debates atuais e, por isso, distantes de consensos ou mesmo possibilidades ou aproximações para tais.
Para já, em termos político-partidário, o ano vai terminar de forma diferente para os dois maiores partidos do arco do poder. Para o MpD e o governo que suporta, tudo vai na santa paz de um capital político acrescido com um dos maiores resultados eleitorais da sua história e, até agora, malgrado alguns percalços de percurso, de quem esteve longos quinze anos arredado do poder da governação e as circunstâncias, nada colaborantes, como foram os três anos de seca a fio. A dificuldade maior parece residir nalguns dos seus setores mais conservadores, diria, ainda sem se descolarem completamente de uma certa assimilação alienante de um espírito oposicionista, efeito de dramas e traumas dos longos e duros quinze anos de oposição ou dando-se, finalmente, conta dos custos e riscos – para alguns, insuportáveis e perigosos – de ser e “fazer diferente”, a meu ver, o principal compromisso eleitoral de 2016.
Quanto ao PAICV, num desbarato político sem precedentes, ainda sem digerir completamente a estrondosa derrota de 2016, tão estrondosa como inesperada, na sua dimensão e consequências, ao que parece, sem condições para uma sã competição democrática interna, acaba de renovar o mandato da sua líder desde 2104 que já lançou o mote da “nova largada”: não deixar o MpD, ter de novo, tanto poder no próximo ciclo eleitoral! O que se constata, de fora, é um mergulho autofágico, cada vez mais profundo, num separatismo fraturante interno de má memória na curta história político-partidária em Cabo Verde, com diria alguém, “do outro lado da circular.”
Mais do que o passado, o imediato que precisa exorcizar rapidamente e a todo o custo, e o outro, ainda recente, em que precisa sustentar-se e estribar-se, o PAICV deve ser, hoje, sobretudo, um partido para o futuro de que darei conta na próxima crónica sobre as perspetivas para 2020, tendo o próximo congresso na mira.
A UCID, tudo leva a crer, tem, ainda, uma história para contar, especialmente em S. Vicente se fizer mais e jus ao nome que leva. Sobre o PP, fica-se com a impressão que tem sempre muito mais tempo de antena do que tem direito, o que não deixa de ser um grande, sincero e merecido elogio a este mais novel partido na arena nacional, ainda a fazer o seu caminho.
Sobre a nossa sociedade civil organizada e sua intervenção sociopolítica, por mais que custe aos saudosistas do reino dourado perdido, Sokols não é ainda representativo de uma sociedade civil dinâmica e construtiva, salvando por enquanto, entre algumas raríssimas exceções, a Plataforma de ONG que, sob uma reconhecida liderança, prossegue a sua trajetória de sucesso com pujança, numa atitude sóbria e parceira e prestes a alargar, de uma forma mais efetiva a sua abrangência às ilhas do Norte do país.
Financiamento da Economia
Efetivamente, no processo de criação, construção e operacionalização do fundamental ecossistema de financiamento da economia e das empresas, ainda no meio de alguma querela política, sobre os números e dividendos, Cabo Verde Investment Forum (CVIF), não deixa e ser um elemento de destaque em 2019. Realizar três fora, sendo dois no estrangeiro, com o nível de participação, dimensão e complexidade que se viu, não deixa de ser obra e muito trabalho.
Efetivamente, pode-se, até, discutir os números – se mais ou menos milhões – mas contata-se que o Governo não tem regateado esforços no sentido de realizar capital e criar as infraestruturas do tal ecossistema. Todavia, o busílis da questão continua a ser o processual; o calvário do cidadão e do operador para aceder, em tempo útil/hábil, às decisões e finalmente ao capital, enfrentando a senhora toda poderosa e omnipresente burocracia e os hiperzelosos de plantão. Será que, quem de direito, por obra e graça de tanto ser e fazer diferente, não consegue dar-se conta que existem processos de intenção, subculturas – diria não-convertíveis – de resistência passiva e pessoas tão competentes como mal-intencionadas, que não querem e não deixarão, tão fácil, que isso aconteça?!
Lei de Paridade
Não há dúvida de que, quando as mulheres querem e se unem, conseguem, quais sexos fracos!
Conseguiram e, para isso, os homens também contribuíram para que, depois de alguns desencontros de agenda parlamentar, em finais de novembro, fosse aprovada a Lei n.º 68/IX/2019 de 28 de novembro, conhecida por “lei de paridade,” o que, malgrado uma tímida e frouxa petição da UCID, junto do Presidente da República, viria ser promulgada e publicada, mesmo assim, estabelecendo um tal rácio paritário de representação/participação mínima de 40% de cada um dos sexos (não será género?!) nas listas de candidatura aos órgãos colegiais do poder político, nomeadamente, assembleia nacional, Câmara Municipal, Assembleia Municipal e outros órgãos infra ou supramunicipais.
No entretanto, poder-se-ia, muito bem, evitar, no preâmbulo e na nota justificativa da lei, tanto afunilamento na ideologia de género, infelizmente, muito na linha de uma certa agenda mundial, cada vez mais abrangente e assumida, que defende, promove e impõe tal ideologia, para a qual a feminilidade e a maternidade são acidentes ou aberrações cósmicas ou, quiçá, brincadeiras de muito mau gosto de um deus 3M (maluco, machista e misógino).
A próxima Crónica
A não perder, a crónica complementar sobre as perspetivas para 2020, dentro de uma ou duas semanas, com os meus mais sinceros votos de uma quadra festiva feliz na paz e no bem e um novo ano de muitas prosperidades.
pedromoreira2006@gmail.com
(Publicado no A NAÇÃO impresso, nº643, de 26 de Dezembro de 2019)