Por: Rui Pereira
Por honra ao amigo Júlio Herbert, inclino-me para um reconhecimento às suas ideias e vontade. Acreditava mesmo que a Nação cabo-verdiana só se realizará, nos seus grandes objectivos económicos, sociais, culturais e competitivos num todo, se o arquipélago impuser um posicionamento de qualidade superior na sub-região da Cedeao. Para essas linhas, vertia um alegre entusiasmo nas discussões e menções, para dar prova de que acreditava num assumido outro caminho, a haver, com intencionalidade estratégica de Estado.
Vamos ao tema, começando por admitir que Cabo Verde vive um tempo de embriaguez/bebedeira colectiva. E só a lei que veio para limitar o abuso das bebidas alcoólicas pode não chegar. É preciso porventura mudar a sociedade cabo-verdiana, rapidamente, para um modelo de governação conservadora, sem deixar de ser de pluralidade democrática.
A sociedade anémica/pálida/debilitada que temos, e a mover-se para um profundo nível de descrença nacional, é resultado da ausência duma forte e convincente orientação macro política para o futuro. O país, desde 1975, marco que nos convém para esta imediata análise, nunca foi projectado, sequer pensado para aquilo que melhor nos faça avançar com os riscos calculados, assente num permanente inventário das ameaças e oportunidades, dos pontos fracos e fortes, de modo a haver um articulado compromisso entre ciclos, na perenização de gerações do presente-futuro, no território das ilhas. Porque falta competência normatizada.
De ciclo em ciclo, tudo assume cada vez mais um maior grau de complexidade – e não se brinque com isso! Cabo Verde transmite uma ingénua ideia central de não dispor de Projecto de Sociedade (…), pelo que se pode sugestivamente perguntar: para onde vai mesmo a Sociedade e o Estado?
Ao pretendermos tentar estabelecer, neste átrio da abordagem política de integração regional do Arquipélago na CEDEAO, um ponto POR ONDE COMEÇAR (?), emerge um incontornável pré-requisito: A Governação das próximas décadas. Veja-se que o mundo vem conhecendo um processo de transformação acelerada e tantas vezes imprevisível. E Cabo Verde não quererá que a História passe por ele limitando-se a flutuar no atlântico ao sabor de ventos, que nem sempre sopram de quadrantes favoráveis.
De facto Cabo Verde encontra-se despreparado para enfrentar os desafios do corrente século XXI. Não se trata apenas, embora também, de o país ter 44 anos de soberania independente, e de não ter sido capaz de ainda ter ultrapassado o seu persistente subdesenvolvimento. Embora grave, parece que essa limitação pode não ser fatal.
Nesta questão, o que está em jogo é a possibilidade de Cabo Verde superar a sua excessiva dependência de forma basicamente autónoma, nos planos doméstico e externo, no exercício da margem de soberania permissível nas condições internacionais. Pois, o processo de globalização, bem como o da provável consolidação e ampliação daquilo que as relações internacionais reconhecem como Pax Americana, nesta primeira metade do século XXI, tenderão, também, a restringir de maneira significativa, senão decisiva, as possibilidades de um desenvolvimento nacional autónomo – se o exíguo Estado e vida no/do arquipélago não for, pelo menos, pensado com rigor enquanto um modelo a se guiar de dentro-para fora.
Cabo Verde está despreparado para enfrentar os mais exigentes desafios do século adiante, na linha duma compreensão e formulação que deveria vir dos ciclos passados. Porquanto a sua governação, referindo-se ao papel das suas elites dirigentes, nas décadas do pós- independência, que não tiveram a consciência dos requisitos epistemológicos e projectivos para encarar o futuro de longo prazo, de modo composto e planificado pelos vindouros ciclos, na previsão de cenários e conjunturas ocorrentes, também com as suas consequências. Até está não se deu que esteja a haver uma séria preocupação do país em clarear e relevar como devem ser atendidos os requisitos de resolução das necessidades básicas e dos problemas sectoriais que, entretanto, adensam em potencial ordem de reocupação para a governação. Sob pena de perder o ainda disponível curto prazo histórico, para alcançar desejadas metas económicas, sociais, institucionais e políticas de país catalogado de desenvolvimento médio.
Em torno dos mais importantes centros de verdadeiro interesse nacional, não se lhes tem percebido dum consistente atendimento de formulação técnica-estratégica, e nem se tem constituído um necessário quanto amplo consenso para a suficiente viabilidade colectiva.
Sem margens para dúvidas, que o país não dispõe de suficiente massa crítica que, ao dispor dos centros de governação, debata e prepare, como fundamental suporte, o futuro a ser feito. Não se dá conta, com efeito, da importância de se ter de romper com certos lastros culturais que vão enfermando o sistema de condução do país, onde a baixa cultura política é, hoje, a mãe de toda a crispação e falta de progressiva ideia de realização de objectivos colectivos, na consensualidade.
Tudo numa altura em que deveria ser inabdicável a ordem conceptual também de conhecimento que determinadas matérias exigem, para se produzir transições favoráveis, entre cenários probabilísticos preferenciais, e ciclos concilidamente mesuráveis.
Impressiona pois a falta de conhecimento acerca do processo de governação de longo prazo do país. Porquanto, o país não identificou uma governação capaz de projectar o seu futuro intergeracional, em cima dum modelo distintivamente insular seguinte.
Pois, a inserção de Cabo Verde no espaço internacional – sem que disponha de recursos naturais reconhecidos como tradicionais para promover o desenvolvimento programático, ou sem que seja verdadeiramente visto e respeitado pela abundância das riquezas naturais e prestígio internacional de Estado influente (que não é) – não confere, de si, uma ideia sustentável do arquipélago. Há temas que, de-há décadas, vêm curvando a sociedade sobre um avolumar de vulnerabilidades económicas e de preocupações de sobrevivência material, condicionando a afirmação como comunidade e Estado independente
Apesar da percepcional importância territorial e geográfica na fachada atlântica médio-sul, o certo é que a sua projecção no quadro estratégico geral referente à Cedeao ainda não existe (CV não sabe o que fazer/para onde ir/aonde quer chegar/com que propósitos nacionais?). E nem pode existir u escopo de ideias claras e contundentes, enquanto o sentido posicional para com o continente africano estiver encoberto ou apagado pela sombra de diversos mantos do preconceito psico-histórico, de posições receosas vizinhas, da subestimação do pouco tamanho, da distância dos mercados e sociedades, bem como da secular abordagem de dependência de Cabo Verde face ao exterior.
Não dispondo dum pensamento político nacional específico, com políticas de desenvolvimento de modelo insular em todos os mais relevante domínios de vida endógena, Cabo Verde não tem condições duma posição de desafiar uma manobra de dimensão estratégica de expansão e internacionalização competitiva. Por isso que, por exemplo, não é desígnio nacional (assumido por centros do poder político caboverdiano) que se ache importância quanto urgência em assumir-se a presidência da Cedeao, nem muito menos colocar quadros nacionais nos organismos aos diversos níveis e comissões de integração e representação internacional – o que serve e serviria para alimentar a imagem de força do arquipélago. E o país não sabe / ou não quer dar valor estratégico ao activo trabalho do Estado para a projecção da sua influência e de seu poder no plano externo (porque não tem poder de Estado / ou não sabe do seu poder atlântista).
Numa observação de pretensão mais qualificada, é que não se tem nenhuma noção de como se constitui um Estado (mesmo tão pequeno como CV) decisivamente de qualidade e forte no plano internacional; nem se faz a devida avaliação dos campos e factores que possam conferir a CV ganhos de verdadeira vantagem competitiva, no discorrer do longo caminho. E a competição internacional não é assumida, sobrepondo traumas e fantasmas diversos, que colocam CV perante o seu próprio medo de existir.
Garantir o campo de forças nacionais para também preservar a independência de Cabo Verde deve ser uma preocupação central do Estado, a partir daquilo que o contexto externo pode permitir às ilhas.
Em verdade, as insuficiências de Cabo Verde – seu Estado, sua sociedade e sua nação, por o futuro não ter sido preparado e antecipado, lá onde uma estratégia geral pudesse permitir – são, por esta altura, enormes e profundas. Por exemplo, as estimativas dos próximos 10 anos / 20 anos / ou 30 anos, como prazos limites para a previsibilidade internacional, podem conduzir mesmo à instalação do sentimento de perturbante pessimismo, de bloqueio, ou desnorte da próxima geração de cabo-verdianos. E a questão da África para a firmação internacional de CV, no rumo em diante, com um proveitoso posicionamento na sub-região da Cedeao, são temas de alta relevância, o que exige realizar um pensamento estratégico, de trás-para-frente, essência da política de governação nacional para o longo horizonte.
Certo é que o natural posicionamento abaixo da metade do Atlântico, ou melhor: a situação geográfica, definida por largas fronteiras em latitude e longitude, determina razões principais do elevado valor estratégico do arquipélago, com perspectivas de projecção e liderança à escala regional não são para menos, quando se trata de suporte justificativo de qualquer plano de actuação política internacional do Estado de Cabo Verde. Por esta altura, a realização de Estudos de Diagnóstico e Desenvolvimento Prospectivos do Futuro seguinte tornam-se absolutamente fundamentais.
A governabilidade tem que avocar uma nova disposição para tomar medidas que garantam a crescente inclusividade da sociedade, no seu todo, nos desafios da Cedeao.
PS:
Na tarde de sexta-feira anterior ao seu falecimento, a 21 de Outubro, estivemos juntos, Dr. Júlio Herbert e Eu, no seu gabinete durante 3h30m, com a questão da África e da CEDEAO como tema de fundo. E por quais razões o oculto tenha reservado a interpretação do gesto, ao sair do encontro, ter-me-ia oferecido fotocópia dum excerto parte duma obra-ensaio sob o título ´Democracia e elite: o papel da elite na sociedade pluralista`; de Hans-Jochen Vogel. Com certeza, será guardado, com toda a religiosidade.
Júlio Herbert no Atrium do poder: A perturbante questão africana da governação
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