Por: Adriano Miranda Lima
Em linguagem política é frequente o uso da terminologia “esquerda” e “direita” entre formadores de opinião, académicos e mesmo cidadãos comuns, mas sem que os políticos dela prescindam quando lhes interessa focar a diferença entre uns e outros. Porém, admite-se que haja quem utilize esses termos, em relação ao adversário, mais para compor um rótulo pejorativo do que para exprimir uma caracterização ideológica.
Penso que, no discurso político em Cabo Verde, não é usual relacionar de uma forma linear o PAICV com a esquerda e o MpD com a direita, não porque a realidade seja outra, mas provavelmente porque o parto da nossa democracia não procedeu de uma progenitura normal, por ter partido de uma fecundação imposta pelas circunstâncias e com um tempo mínimo de gestação. Não admira que assim tenha sido, atendendo a que o país soberano iniciou-se em regime de partido único e a democracia parlamentar ainda não teve vigência suficiente para proporcionar uma cultura política tão amadurecida que se reveja na tradição europeia em todo o estendal da sua práxis e rituais. Pode-se pensar que o podemos dispensar, mas é legítimo admitir o contrário uma vez que os modelos jurídicos que institucionalizam a nossa democracia são dum modo geral importados das democracias europeias, o que, convenhamos, não acontece por mero acaso.
O que é que aquela terminologia acrescenta de valor à nossa prática política? Talvez pouco ou nada, mas pode propiciar a oportunidade de, entre outras medidas, reformular o tecido político-partidário, em particular no que respeita a uma reestruturação das actuais forças políticas, redefinindo a sua matriz ideológica e dotando-as de designações de ressonância mais hodierna.
Vejamos agora que a origem dos termos “esquerda” e “direita” remonta à Revolução Francesa, que foi o cadinho onde se forjaram, com os ingredientes do pensamento iluminista, os modelos políticos, sociais e culturais que iriam iniciar a Idade Contemporânea. Os revolucionários reuniram-se em Assembleia Constituinte para legitimar uma nova representatividade política e redefinir os rumos da França, e os dois grupos que ideologicamente mais se extremavam ocuparam alas opostas do salão. Na ala esquerda, sentavam-se os mais exaltados e belicosos, alinhados com a baixa burguesia e os trabalhadores e artesãos, partidários de um corte radical com o regime anterior, e representados maioritariamente pelos Jacobinos. Na ala direita, os mais moderados, propondo soluções de conciliação e articulação com a nobreza e a alta burguesia, e não aprovando grande ruptura com a ordem institucional tradicional, sendo representados principalmente pelos Girondinos. É da histórica divergência ideológica entre esses actores que deriva a definição caracterológica de esquerda e direita, com posterior introdução destes termos no vocabulário político.
Contudo, na actualidade, sobretudo desde o início deste século, e após o insucesso da experiência comunista (ou da prática que lhe foi imprimida) na Europa e no resto do mundo, assiste-se a um certo esbatimento da diferença entre a esquerda e a direita. A tendência tem sido mais para diferenciar a natureza substantiva das propostas políticas do que para exacerbar o discurso dicotómico e bipolar. De facto, a realidade e a complexidade enredada dos problemas sociais do mundo de hoje obrigam muitas vezes a que o pragmatismo da acção governativa prevaleça sobre uma abordagem acentuadamente ideológica. E é desta maneira que em muitos países, sobretudo na Europa, se consolida hoje um “centro” na vida política, em relação ao qual se inclina, em alternância, ora mais para o um lado ora mais para o outro. Veja-se o caso de Portugal, em que foi possível trazer para as proximidades desse “centro” partidos que tradicionalmente se enclausuravam numa postura de intransigência política – o PCP e o BE – mas que se prontificaram a viabilizar a solução governativa liderada pelo PS e conhecida como “Geringonça”.
Ainda assim, em termos conceptuais, a esquerda e a direita são ciosas das diferenças ideológicas entre si, e ainda bem. Elas definem-se, respectivamente, pelo maior peso que se dá ao estado social ou por uma clara opção pelas políticas neoliberais. No primeiro caso, a política é inspirada por um ideal de justiça social, com o estado soberano a assumir o essencial das funções ligadas à saúde, à educação e à segurança social, pilares fundamentais da dignificação da condição humana, mantendo sob o seu controlo empresas e sectores-chave da economia. Este é o ideário que, dum modo geral, se inscreve no “centro-esquerda” e enforma a social-democracia ou o socialismo democrático. No segundo caso, as políticas visam a eliminação de entraves ao funcionamento livre da economia, desregulamentando o sector financeiro e flexibilizando ao máximo o mercado laboral, com privatização de empresas estatais e redução da influência sindical. Constituem a receita do estado neoliberal, que esvazia o papel do estado soberano para o subordinar a uma ordem global ditada pelas regras da economia de mercado. Esta é a filosofia da direita, e para alguns a antecâmara de uma nova extrema-direita, na medida em que os seus excessos pervertem a essência do verdadeiro liberalismo.
Posto isto, e perante o que a realidade tem demonstrado, em princípio, e sem preconceitos ou partidarismos na minha análise, o PAICV só pode ser visto como um partido de esquerda, identificando-se com a social-democracia ou o socialismo democrático, e o MpD como um partido de direita, perfilhando a filosofia do estado liberal, mas sem que, em rigor, se possa associar este partido às teses do neoliberalismo puro e duro.
Assim, admito que a democracia ficaria com contornos mais bem delineados se o PAICV passasse a chamar-se “Partido Socialista Cabo-verdiano”, ou outro nome idêntico, fazendo jus em termos nominativos à sua condição de membro da Internacional Socialista. Uma vez que pouco ou nada teria de alterar no seu conteúdo ideológico, tal reconversão teria, inclusivamente, o mérito de o libertar da memória hereditária mais incómoda do seu passado de partido único. Quanto ao MpD, podia perfeitamente passar a chamar-se “Partido Liberal Cabo-verdiano”, ou o que mais se assemelhe, porque não faz sentido continuar a identificar-se como “movimento para a democracia”. Esta designação ter-lhe-á servido quando pugnou pela instituição da democracia, rompendo, em tempo calculado, com o PAICV, de onde provieram muitos dos seus principais quadros e militantes. O que não seria aconselhável é o MpD invocar os pergaminhos da social-democracia e intitular-se “Partido Social Democrata”, imitando o seu congénere português. Porque, em boa verdade, este nada tem de social-democracia na sua prática política, ainda que alguns dos seus quadros o reivindiquem, porventura saudosos das intenções de alguns dos seus mais destacados fundadores. Desta maneira, entendo que muito ganharia a democracia se os dois principais partidos clarificassem a sua identidade ideológica e a referenciassem com uma designação e simbologia iconograficamente expressivas. Evitar-se-ia uma cacofonia política, indesejável quando se pretende que as mensagens provenientes do pleito eleitoral cheguem ao povo suficientemente descodificadas. Sem equívocos e sem subterfúgios de linguagem que confundam os espíritos e predisponham ao abstencionismo eleitoral.
Em todo o caso, quero crer que em Cabo Verde dificilmente se fugirá a um “centro” de um virtual espectro político, que poderá pender ligeiramente para a esquerda (PAICV) ou para a direita (MpD). Digamos que esse centro é a expressão líquida e liminar da realidade sociológica do país. Não permite o experimentalismo de políticas irresponsáveis, muito menos aquelas que tenham o rótulo do neoliberalismo. Porque o Estado é uma figura tutelar indispensável nas nossas ilhas, resguardo daqueles que comem o pão que o diabo amassou e não acreditam em milagres.