Por: Milton J. Monteiro*
Arranca um novo ano letivo, com os percalços e constrangimentos de sempre, mas desta feita com novidade pra lá de polêmica: ensino religioso confessional, nomeadamente a disciplina Educação Moral Religiosa Católica (EMRC).
Antes mesmo de entender a origem do borbulho dessa importantíssima pergunta, é preciso deixar claro que não se discute o que ensina nas escolas privadas, que são de caráter confessional, isto é, pertencentes à uma igreja. É direito, esperado e até louvável que as igrejas ensinem suas crenças nas suas escolas. Agora, quando se fala de uma disciplina sobre religião nas escolas públicas, aí automaticamente é implantada a polêmica e a Constituição acionada, mesmo sem ser considerada.
Isso acontece porque num Estado Democrático de Direito quem tem primeira e última palavra é a Carta Magna e ela precisa ser respeitada. Esta é a concepção jurídica-positiva de Hans Kelsen – “constituição como norma positiva suprema”, seguido pelas democracias modernas. Mas, em Cabo Verde, em nome de uma hegemonia, que é fruto de um passado dramático, mal contado e ainda muito romantizado, não olharam a Lei Fundamental e primaram para uma espécie de sentido sociológico da constituição – “soma dos fatores reais de poder”, o que é grande retrocesso.
Ou seja, o modelo que foi proposto pela Igreja, por meio da Concordata de 2013, e que acabou sendo acatado, sem debate, crivo e responsabilidade, é o confessional. Como a palavra já diz, neste modelo é permitido o ensino, facultativo, de “qualquer” religião nas escolas públicas, por meio da criação de uma disciplina, neste caso, começou com EMRC, para a qual tudo isso foi arquitetado. E ressuscitado, pois esse modelo é de longa data, era em que o Estado servia a Igreja e vice-versa:
Baseado no Padroado Régio e no Regalismo, até a Independência, excetuando esparsas pausas, foi ensinado o catolicismo nas nossas escolas, e com respaldo inclusive constitucional. Por exemplo, a Primeira Constituição Política da Monarquia, a de 1822 (bem como a de 1826 e 1836), que praticamente, nessa matéria, vai sobreviver intacta nas subsequentes, até a de 1911, começa “em nome da santíssima e indivisível trindade” afirmando no Artigo 25º que “A Religião da Nação Portuguesa é a Católica Apostólica Romana”. O que significava supressão de direitos fundamentais garantidos pelo próprio Evangelho, pois só aos estrangeiros era permitido o exercício de cultos não católicos, e estes deviam ser em locais privados (art. 25); todos os cidadãos tinham o dever de venerar a Igreja (art. 19º) etc. Já no ensino, determinou-se ser atribuição administrativo-educacional das escolas a lecionação do catecismo e das obrigações religiosas (art. 237).
E se engana quem achar que estamos trazendo um passado meramente monárquico; não é. A liberdade religiosa demorou, teve avanços e recuos por lá, consequentemente no nosso país. Por exemplo, no Estado Novo, ditatorial do Salazar, houve involuções, estabeleceu-se constitucionalmente a “religião católica como a religião da nação portuguesa”, o que resgatou algumas das velhas regalias.
Por esse período, foi arranjada a concordata de 1940, que valeria também nas nossas escolas, até 1975. A matricula era automática e o pedido de dispensa era à custa de discriminação e represálias. Corrigido isso, já julgada como inconstitucional, ela passou a ser facultativa, o que não diminui a inconstitucionalidade da pergunta: ainda assim, o modelo confessional do ensino religioso no espaço público é pecado? A resposta é sim! Vejamos:
No art. 2º, Cabo Verde, ao colocar-se como “Estado de Direito Democrático”, estabeleceu para si um dos baluartes do Republicanismo que é a laicidade: “2. A República de Cabo Verde reconhece e respeita, na organização do poder político, [..] a separação entre as Igrejas e o Estado”.
Obviamente que isso não quer dizer ser um Estado ateu, antirreligioso – laicismo. É tanto que ao retomar o princípio de separação no art. 49º –“3. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são independentes e livres na sua organização e exercício das suas atividades próprias”, aí também é estabelecida a de parceria – “sendo consideradas parceiras […]”.
O fato é que a parceria e a hermenêutica que se faz do art. 82º, quanto ao direito dos pais de educar, não podem ferir separação, em face do princípio da unidade constitucional. Por isso que ao mesmo tempo em que a CRCV (no art. 49º) demonstra sua preocupação com a liberdade religiosa e com o ensino religioso, ela também estabelece vedações compatíveis com o Estado laico, entre estes as proibições do art. 50º: “A liberdade de aprender, de educar e de ensinar compreende: c) A proibição de o Estado programar a educação e o ensino segundo quaisquer DIRECTRIZES […] RELIGIOSAS; d) A PROIBIÇÃO DE ENSINO PÚBLICO CONFESSIONAL[…]”.
Ou seja, a única forma de compatibilizar laicidade com a liberdade religiosa é através da adoção do modelo não-confessional, ótica que garante a efetividade da determinação constitucional. Aqui a disciplina não é complementação do altar, ligado a qualquer religião ou pretender veicular crenças e muito menos os professores serem admitidos na qualidade de representantes das igrejas.
Em Cabo Verde, agora o Estado é obrigado a servir a igreja, pois quem dita o conteúdo da disciplina é a Igreja; ele paga os professores, mas compete a Igreja selecionar. Nisso, a inconstitucionalidade do art. 15 e 16 da Concordata é categórica: “2. É da competência exclusiva da autoridade eclesiástica a definição do conteúdo do ensino da religião e moral católicas”; 4. Os professores de religião moral católicas nos estabelecimentos de ensino públicos são nomeados ou contratados, transferidos e excluídos do exercício da docência da disciplina pelo Estado, DE ACORDO COM A AUTORIDADE ECLESIÁSTICA competente”.
Perguntamos: como isso harmoniza com o princípio de separação se o professor é funcionário público e também representante da igreja? Ainda, em face da limitação preconizada no art. 30º da Lei n.o 64/VIII/2014 – “7. O ensino de religião e moral nas escolas públicas deve respeitar o pluralismo religioso da sociedade cabo-verdiana […] e não incluir qualquer forma de proselitismo’’- perguntamos: como respeitar o pluralismo e não fazer proselitismo ao mesmo tempo que se tem o modelo confessional? Na prática é impossível ministrar ensino religioso confessional sem ser proselitista.
Portanto, o modelo aconfessional deveria ser o escolhido se de fato estivéssemos interessados em criar a disciplina de religião nas escolas. Como quiseram perpetuar os velhos agrados e entrar na bazofia do primeiro da África Ocidental, acabaram escolhendo um modelo que mal sabiam o que era, e quais reais implicações isso traria.
Fé na educação cabo-verdiana: pecou-se contra a Constituição? Parece que Estado servir a Igreja é uma verdadeira promiscuidade inconstitucional, mas agora quem deverá responder é o Tribunal Constitucional.
*Cabo-verdiano, radicado no Brasil, é membro-fundador do Observatório da Liberdade Religiosa (OLIR Brasi) e Professor-Doutor efetivado na Universidade Federal do Tocantins