Por: Arsénio Fermino de Pina*
Recentemente veio à baila nos jornais a cadeira de lona onde repousava Salazar no seu local de férias no Forte do Estoril, em S. João do Estoril, com a informação de que tinha sido lançada ao mar, quando deveria ser conservada em museu para a posteridade, por ter posto fim a uma ditadura terrível de quase quarenta anos, resistente a todas as tentativas de derrube, a bem ou a mal. O livro “A queda de Salazar – O princípio do fim da ditadura”, de José Pedro Castanheira, António Caeiro e Natal Vaz, fornece-nos informações intrigantes guardadas durante anos no segredo dos deuses ligadas à sua queda no Forte do Estoril, sua vida depois disso, das peripécias relativas à escolha do sucessor e do governo do professor Marcelo Caetano. Irei relatar algumas dessas peripécias e segredos, aproveitando para falar dos presos políticos, eufemisticamente chamados deportados políticos do regime que foram parar à minha ilha natal, S. Nicolau.
Desde a minha infância na Patchelândia (S. Nicolau) que a simpatia por Salazar foi nula. Isso por ter convivido com os descendentes desses chamados deportados políticos antes da inauguração do Campo de Concentração do Tarrafal em Santiago, em 1934, sob o modelo do primeiro campo de concentração nazi de Dachau. Os presos chegaram à ilha sob escolta militar de soldados indígenas angolanos e enfiados no ex-Seminário-liceu, já desactivado desde o início da Primeira República, posteriormente encaminhados para a vila piscatória do Tarrafal da ilha, onde foram construídos barracões para eles (para maiores precisões consultar o trabalho do sociólogo patchê José Cabral) e, mais tarde, deixados livres na ilha com a condição de nunca abandonarem a mesma. Bons anos depois, beneficiados de amnistia, bem poucos regressaram a Portugal, ficando os restantes na ilha onde constituíram família. Alguns desses deportados políticos iam à nossa casa ouvir noticiário radiofónico no único aparelho de rádio da ilha aquando da Guerra Civil Espanhola, esperançados na derrota de Franco, que poderia desestabilizar o regime de Salazar.
Grande parte desses deportados políticos tinha participado da Revolta da Madeira. Dois deles, os tenentes Pélico Neto e Manuel Camões (médico) tinham sido enviados à Madeira para combater a revolta, mas juntaram-se a ela ao conhecerem os seus motivos. Salazar nunca os perdoou, visto pertencerem a famílias conhecidas do ditador da região de Coimbra. O livro do pai do falecido presidente Mário Soares sobre a Revolta da Madeira, trata em pormenor desse imbróglio, e foi o neto, João Soares, quem me facultou um exemplar por não o ter encontrado à venda nas livrarias; mais tarde adquiri outro num alfarrabista e ofereci-os aos descendentes do Tenente Pélico e do Dr. Camões.
Na minha infância e juventude convivi de perto com os filhos do Tenente Pélico, mormente com o Chiquinho, um ano mais velho, e o Rui, mais novo. Eramos companheiros nas caçadas à galinha-do-mato, de pardais e em várias outras actividades que conto no meu livro ULI-ME LI! Outro companheiro da infância foi o Adriano Noro, filho do deportado Noro, actualmente um exímio mecânico residente na Praia, e o Djack, filho do senhor Pinheiro, mas com menos frequência por residir no Tarrafal, bem como o Manuel Camões filho, residente na Fajã, que vim a rever em Coimbra, eu no primeiro ano de Medicina e ele no fim do curso. Foi com os filhos do Tenente Pélico que fiquei a conhecer as patifarias cometidas pelo regime de Salazar, nascendo em mim a animosidade anti-salazarista, até porque o meu pai convivia perfeitamente com esses presos políticos, que frequentavam a nossa casa, havendo até uma foto onde estou eu, com cerca de dois anos, o meu pai e o famoso lutador antifascista Capitão Vilhena numa ruela da nossa propriedade Tantchon.
Além do Tenente Pélico e Dr. Camões, conheci o senhor Pinheiro (técnico maquinista) que ficou no Tarrafal, constituindo família, apoiando o senhor Cadório na fábrica de conserva de peixe, sobretudo de atum, fábrica que deu vida ao lugarejo transformando-o numa vila. Actualmente, a fábrica pertence ao filho Djack Pinheiro, que substituiu o pai na manutenção das máquinas, e graças à sua capacidade de gestão dirige a empresa juntamente com os filhos. Velho companheiro com o Chiquinho, recapitulámos os tempos da juventude caçando, numas férias, galinha-do-mato nas bandas da Praia Branca e Ribeira Prata, já não a pé como antes, mas de carro, que as canelas já não dão para mais. Havia ainda o Major Sousa, angolano, Artur Dinis Pereira, pai da minha mulher, entre outros cujos nomes não me ocorre. O Dr. Camões nunca regressou a Portugal e mais tarde foi delegado de saúde na ilha, deixando numerosa prole. O Tenente Pélico, já com o posto de coronel, viveu algum tempo em S. Vicente no activo da sua função militar e regressou a Portugal, na velhice, onde o visitava com certa frequência, manifestando saudades de Cabo Verde. Portugal já nada lhe dizia. Ainda teve o prazer de viver o 25 de Abril, embora com pena, como muitos outros militares, que tal revolta não tivesse sido no tempo de Salazar.
Vejamos algumas consequências da queda de Salazar da cadeira de lona no que nos possa interessar directamente, nalguns antecedentes do regime político e na pós queda.
Vivi a fase inicial do consulado de Marcelo Caetano, incluindo a fase da primavera marcelina. Nunca acreditei muito na sua capacidade para dar a volta ao salazarismo, por ter sido um colaborador directo e fiel de Salazar desde muito cedo, como ministro do Ultramar (início em 1944) e ministro da Presidência do Conselho, geralmente um posto para delfim de governante. Sempre me engasgou a reacção dele como ministro do Ultramar quando lhe comunicaram que morria gente de fome em Cabo Verde, ao que perguntou “porque não pescam?”, sem tomar nenhuma medida. Há uma foto dele com a farda da Mocidade Portuguesa (M.P.), como comissário nacional da M.P. fazendo continência fascista. Diga-se, em abono da verdade, que o homem evoluiu um tanto no sentido liberal, ma non troppo, que lhe permitisse respingar quando necessário. Era relativamente tolerado pela oposição por se ter demitido do cargo de reitor da Universidade devido à proibição do Dia do Estudante e invasão dos recintos da Universidade pela polícia de choque. Amuou com Salazar por ter sido exonerado do posto de Ministro da Presidência e passou largos anos fora do governo nas suas actividades profissionais privadas e de ensino.
Foi durante esse período, 1962, que foi convidado pelo então ministro do ultramar, Adriano Moreira, para dar o seu contributo ao Plenário do Conselho Ultramarino, convocado no âmbito da revisão da Lei Orgânica do Ultramar, mas não compareceu, julgando a sua presença inútil, ainda magoado com a exoneração do cargo de Ministro da Presidência. Depois, apareceu um projecto sem carta de remessa, como confessa Adriano Moreira, sem assinatura, mas em papel timbrado de Marcelo Caetano, que “estabelecia as linhas gerais de um Estado federado e pugnava por mudanças mais radicais” do que as avançadas por Adriano Moreira, na altura Ministro do Ultramar, imagine-se só! Salazar ordenou “que a circulação dessa proposta fosse interrompida”. Magister dixit, e cumpriu-se.
[continua]
Parede, Fevereiro de 2019
*Pediatra e sócio-honorário da Adeco