Por: Nataniel Barbosa Vicente e Silva
Quem é Maria Gomes Horta?
Maria Horta ou, se preferir, Maria “Kadjunbi” como erradamente é conhecida, nasceu a 15 de Novembro de 1938 em Monte Iria, arredores da (então) Vila do Tarrafal. No grupo de dez irmãos é, pois, a segunda filha de um humilde casal: Ernesto de Horta e Júlia Gomes.
A história porém, que se segue, é de uma mulher simples, corajosa, frontal, e, de muita fé. É conhecida no Tarrafal por “Maria Kadjunbi”, devido às suas “misteriosas” artes. Assunto que vamos esmiúçar mais abaixo neste trabalho.
Infância
Maria passou toda a sua infância em Colhe Bicho, em companhia de outros irmãos, aos cuidados da madrasta. Só deixou esta zona aos 13 anos de idade, juntando-se à mãe, embarcando para o “Sul”.
Não frequentou os banquinhos da Escola, à semelhança de muitas crianças do seu tempo, pois, tão cedo se entregara ao mundo do trabalho.
Vida conturbada nas Roças de São Tomé
Em 1951, na idade de 13 anos, parte com a mãe para as “Terras do Sul”. Logo instalados na Roça Pedrona, a mãe é colocada no tratamento do “galinheiro” e ela na capinagem. Com o decorrer do tempo, Maria passa por situações deveras embaraçosas, devido ao comportamento abusivo dos patrões da Roça.
Salienta que, por vezes sem conta, a sua própria vida corria seriamente riscos, face às ameaças destes.
Mais adiante veremos até onde chegaria a fúria esquizofrénica de um “branco”, como eram tratados os “patrões” das roças.
Avança a nossa entrevistada que, a prática de violação era corriqueiro e um costume antigo nas Roças de “Sul Abaixo”, em troca de trabalhos menos cansativos, e que, muitas das colegas da sua idade deixaram-se ser aliciadas pelo embuste.
Conta que, certa vez, um “branco” passou por ela e murmurou: “Bo e kenha…ki ta bai sima bu ben!”. Com isto se constata, realmente, o grau de hostilidade a que Maria esteve exposta. E realça: “Ez ka gostaba di mi, pamodi N flaz ma mi N ba trabadja; ma N ka ben pari”.
Um pontapé ”muito caro”
Maria conta que, por vezes, sentia uma força divina no seu interior. E conta uma das suas mais amargas estórias.
Certo dia, enquanto, descontraídamente, se encontrava agachada no seu trabalho de “capina”, um “branco” mordido pela birra,deu-lhe, à queima-roupa, um pontapé nas ancas. Perante tal “desprezo”, não teve, no momento, outro raciocínio. Pega de uma catana e desfere-lhe um duro golpe no calcanhar. “N staba ‘nbaxadu ta kapina, N xinti un pontapé na kadera. N pega di maxin, N kortal kalkanhada.”, conta.
Perante uma “emboscada” de 7 cobras negras
De toda a “estória” até agora relatada, a que se segue é, certamente, a mais arrepiante.
“Un certo diá, Na kaminhu di kaza, kruza nha frenti 7 kobra pretu, ku odju pregadu na mi. N pára, N sumaraz, N papia ku êz na língua di Foru: ‘ A mi nhoz ka ta pon medu. A mi N ka debi nhoz nada. Sina N flaz si, ez perdi musesu. N da rinkada N ba nha kaminhu”, desfia.
Como se diz num bom português: “Quem não deve não teme!”.
Regresso
Estávamos em 1954, Maria regressa de São Tomé e príncipe, na companhia da mãe, já com a idade de 16 anos, após ter passado por vicissitudes mil.
Na mirade casamento…
Se nas roças de São Tomé, Maria fora, na verdade, perseguida pelos “lobos brancos”, em Cabo Verde o seu destino viria a ter outro rumo: casamento!
Como apregoa o velho ditado: “Depois da tempestade, vem a bonança!”.
Pouco tempo depois da sua chegada à Terra, um homem das suas redondezas rondava, constantemente, à sua beira, com proposta de casamento para um irmão seu, que se encontrava em São Tomé, que lhe incumbira, na Terra, a escolha de uma boa e prendada rapariga para casamento, assim que regressar.
Numa selecção de três “raparigas prendadas, que foram contactadas, a bateria fora, directamente, apontada à pessoa de Maria.
Anúncio de noivadao
“Nha Maria”, hoje uma anciã, na casa dos 80, ainda se recorda do dia em que o tal rapaz chegara à casa dos pais com a sua proposta.
Relata assim: “Ami xintadu, txiga na kaza un rapaz altu, bazofu…Bom!…di restu N Ka sta lenbra maz”.
O enlace
Ela, então, na casa dos seus 16 anos, e ele, a rondar os 29. A cerimónia foi simples e teve lugar pelas seis horas da manhã, na Igreja Matriz de Santo Amaro Abade, no ano de 1954, presidida por um Bispo (de que não s elembra o nome).
E revela, sem titubear: “Kazamentu foi senpri nha dizeju, desdi mininu!”, notando que valeu a pena a sua luta em São Tomé preservando a sua “honra di minina”.
Retorno a São Tomé e Príncipe
Os recém-casados não tiveram muito tempo para “saborear” a ”lua-de-mel”, porque, uma semana depois do enlace, embarcam, de novo, para o arquipélago doGolfo da Guiné, à procura de novas bênçãos.
Ali veio nascer, então, o primeiro rebento, que foi uma rapariga. Dois anos depois, surge, de novo, uma outra rapariga.
Findo o tempo de contrato, de três anos, regressam a Cabo Verde.
Novas aventuras ao “Sul”
Maria e seu marido, inconformados com a situação encontrada em Cabo Verde, regressam, novamente, às “Terras do Sul”, fincando arraias, desta vez, na Roça de Água-Izé
“N duensi dezbêz! N lebadu pa kaza di un ‘mestri’…ki kuran . Di la, N ba ta txeka, poku-poku…ti ki N bira ta kura tanbé”, remarca, garantindo que “ninguen ki ben nha kaza duenti, ka ta bai sima ben”.
“Kadjunbi versus “Djanbi
Ora, a propósito das polémicas palavras: “Kadjunbi” & “Djanbi “ os significados diferenciam-se um do outro (cf. referimos a isso, logo no começo deste trabalho). “Kadjunbi”, na língua do Foro, significa: “Matar,” ou “aquele que mata”.
Numa palavra: “é a arte de matar”. Djanbi significa: “curar”, ou: “arte de afugentar ‘spritu mau”” (espírito mau), numa pessoa.
Em definitivo…
Após quase duas dezenas de anos nas roças de São Tomé, Nha Maria regressa a Cabo Verde, com oito filhos. O marido tinha partido das “terras do Sul” para Portugal, à procura de uma vida melhor.
Só que, “como era muito amigo dos seus filhos”, não ficou mais de quesete meses nas terras lusas, vindo juntar-se à família.
Em Cabo Verde trabalha como cozinheiro, na ex-Colónia Penal, em Chão Bom. Alguns anos depois, veio a falecer, infelizmente, vítima de doença prolongada.
Nostalgia do passado
O tempo passa e as marcas ficam. “Nha Maria” conserva, ainda, na memória, os bons e os maus momentos de São Tomé. Da sua vida de parteira. Do seu grupo de Batuku: “Rotcha”. Do seu Grupo de Carnaval: todos organizados por ela. Lembra, também, com nostalgia, do seu misterioso “Djanbi”, confundido com “Kadjunbi” naquele ritual, que só ela sabe dominar.
Tempos atrás, quem visitasse Tarrafal e não passasse pela “Casa de ‘Nha Maria’” ou “Maria Kadjunbi” – como era falsamente apelidada! -, era, pois, como quem visitasse Roma e não conhecesse o Papa.
Hoje, vive em casa própria, rodeada de filhos, netos, bisnetos e trinetos.
À Senhora Maria e família, ficam os nossos votos de muita saúde e muita paz.
Tarrafal, aos 30 de Maio de 2019