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Opinião

Essa não é uma história de amor

 

Por: Natacha Magalhães

Uma sala pequena, uma roda de cadeiras, a conversa que flui, entre a timidez e alguma vergonha. A facilitadora permanece em silencio como que a encorajar a audiência. Uma delas começa. Estão a ver esse sinal? H mostra o braço e aponta o arranhão. Foi o meu namorado quem mo fez, porque não acatei uma ordem dele, de não ir a uma festa de aniversario de uma amiga. E esse outro? Solta o lenço que traz enrolado ao pescoço e revela um enorme circulo de tons arroxeados. Tem vergonha, mas continua. Disse-me que é a marca dele, para que os outros saibam que tenho dono. Fico chocada. Algumas moças que se encontram na roda de conversa não disfarçam o sorriso de deboche. Outras olham-na, compadecidas, em sinal de empatia. Todas não têm mais do que dezasseis, dezassete nos. Algumas até menos. Como que encorajada, uma outra, que aparenta ter também dezasseis, conta que o namorado, um ano mais velho, não a deixa usar “certas” roupas, que quer saber com quem ela conversa ao telemóvel e até controla-lhe as amizades no facebook, seguindo os comentários que um ou outro rapaz faz sobre suas fotos. O controlo tem sido tanto que S praticante deixou de postar fotos. Joel – não pede que se oculte o nome – também tem uma história para partilhar. Passou um mau bocado com uma namorada possessiva, que o ofendia e humilhava em frente aos amigos. Quando finalmente conseguiu terminar a relação, a ex passou a difama-lo entre colegas e amigos. Passou um mau bocado, ficou um tempo deprimido, mas conseguiu superar, com ajuda de um especialista. Hoje, dá conselhos aos amigos para não aceitarem relações abusivas. Por isso, naquele dia levou M, que vem passando por problema semelhante. Naquela roda de conversa, os relatos vão surgindo. São tantos que não dá para acreditar que pessoas com tao pouca experiência de vida já estejam a vivenciar relações abusivas e violentas.

As historias de Joel, H e S são apenas três das centenas de histórias de uma violência que passa à margem quando o tema é violência baseada no género. Uma ponta de um iceberg profundo e com implicações e consequências bem mais sérias do que à primeira vista parecem ter. Há coisas que ficariam melhor de serem abordadas se estatísticas houvesse. Mas de estatísticas, particularmente sociais, andamos muito aquém. Tem-se a perceção de que a violência no namoro existe, mas não da sua real proporção, do tipo que nos ajudaria a saber quantas e quantos jovens são vitimas de violência no namoro, qual o tipo mais frequente de violência sofrido, a origem social, entre outros aspetos do problema. Entre relatos, percebe-se que a violência no namoro não é encarada como VBG ou então é aceite e até perpetuada, ou pela falta de informação e de entendimento dos jovens na matéria – muitos não consideram determinados comportamentos e práticas como sendo violência – ou por vergonha e inexistência de estruturas onde estes possam procurar ajuda. Em tempos, através de uma entrevista concedida a uma rádio, a ativista social Miriam Medina, mentora do projeto de prevenção da violência no namoro “se causa dor não é amor”, e que esteve em palestras por vários liceus do país, ficamos a conhecer relatos dramáticos e chocantes de adolescentes, vitimas de violência e abuso no namoro, um problema que afeta não apenas meninas, mas igualmente rapazes.  Aliás, o problema tocou-lhe de tal forma, que a ativista compilou os testemunhos que serão dados a conhecer publicamente num livro que planeia publicar.

Falar da violência no namoro entre adolescentes e jovens, a outra face da violência baseada no género, é igualmente necessário e urgente. Muito se tem falado sobre a VBG, causas e prevenção, mas o enfoque é sempre na violência praticada contra as mulheres, maioritariamente em relações conjugais. Porém, é igualmente importante, ou até mais, que se fale e se sensibilize a sociedade e, particularmente os mais jovens, para a violência na fase de namoro, atendendo à razão de que é a adolescência a fase em que a autoestima e personalidade dos jovens se encontram em construção. Por outro lado, estudos feitos em outras paragens evidenciam que existe uma alta probabilidade de jovens se tornarem agressores ou vítimas na vida adulta, se experienciarem relações abusivas. Isso sem contar que, muitas vezes, indivíduos que sofrem desse tipo de violência ficam com sequelas significativas ao nível do emocional e experimentam dificuldades no estabelecimento de relações afetivas, bem como na identificação dos limites dentro dessas mesmas relações. E é nesse ultimo aspeto que tem que se focar. A normalização da violência no namoro e até a romantização de alguns atos violentos são as barreiras que muitas vezes impedem os adolescentes e jovens procurarem ajuda para romper com o ciclo da violência. S demorou a entender que estava numa relação abusiva. Para ela, a agressividade e o controlo do namorado eram sinais de bem querer e atenção. Quando desabafou com a mãe, esta disse-lhe que era normal, que não devia fazer drama porque o rapaz gostava dela. Ela própria também tinha sido sofrido violência por parte do primeiro namorado que depois veio a ser seu primeiro companheiro. Mas S pede ajuda, para não passar pelo mesmo que a mãe.

Assim, é imperativo que programas e iniciativas de prevenção ao fenómeno sejam alargados e reforçados nas escolas e nas comunidades. E por isso, em mês que se “institucionalizou” como dedicado aos namorados, assinala-se positivamente as iniciativas da Associação Cabo-verdiana de Luta contra a VBG e do ICIEG que têm levado o tema às escolas secundarias da capital, mas que devem ser alargadas a todo o país.

Por outro lado, famílias, façam a vossa parte. Não pensem que isso apenas acontece aos filhos dos outros. Conversem e alertem vossos filhos e filhas para os sinais que enformam violência e que podem passar despercebidos por não comportarem a dimensão física do abuso.

Afinal, tudo que causa dor e desconforto, jamais pode ser amor. 

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