Por: Filinto Elísio
1. Anuncia-se o Festival de Literatura-Mundo do Sal. Quatro conferências, oito mesas de diálogos, sessões de poesia, homenagens, exposições e lançamentos de livros, para além de quatro dias de convívio criativo entre os escritores, professores, leitores e editores cabo-verdianos e os pares estrangeiros. Ainda estamos, se me for permitido esta metáfora, em tempo de sementeira, é apenas a 2ª edição. São algumas edições à frente, descontando as estações de estio, para a colheita consolidar-se farta. A maioridade virá com o tempo e este é um ser fogoso. Fremente. Veja-se o caso do festival literário Correntes D’Escritas, em Portugal, que começou pequeno e que agora, na 19ª edição, tem ressonância de louvar a Deus e prepara a candidatura de Póvoa de Varzim à Cidade Literária da UNESCO, propósito que também se resguarda. O Sal tornou-se já uma ilha literária de Cabo Verde e, prosseguindo nesta seara da literatura-mundo, pode vir a ser “reconhecida”, com a mesma ressonância universal, como recentemente tornou-se Praia – Cidade Criativa, pelo viés da música e, em muito, graças aos eventos musicais, particularmente ao Kriol Jazz Festival, este ano em 10ª edição.
2. Olho-me ao espelho: o despontar dos fios brancos, o vincar das rugas e o sentir “lebi na petu”, vaticinado por Eugénio Tavares. Já fui mais intransigente, diria até mais irascível, diante de certas coisas & loisas que não aprecio. Agora, em matura idade, vejo-as com mais isenção (não com neutralidade, diga-se), de que nada é por acaso e, mesmo quando caos, nada é despido de sentido. Em “Tabacaria”, Álvaro de Campos às tantas suspira: “Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!” Entrementes, diante da relatividade das coisas & loisas, mantenho-me sereno a deambular os singradouros da ventura. Permaneço-me nesta terceira margem do rio que a vida alardeia.
3. Em contagem decrescente (e 9, e 8, e 7…), chegando a zero, o estouro da bolha e o nascer da revista ‘As_simetrias [artes, letras e ideias]’, como prometera ao amigo António Loja Neves. A cidade em polvorosa, fanfarras e foguetes, põe-se a gritar o rei vai nu, mas rei que é rei anda nu e de sumptuosa coroa. Dir-se-ia uma manifestação carnavalesca a ganhar vida pelas ruas ou qualquer outro sobejo acto entre este ‘in the making’ e o desenfreado desfile da colónia endógena. Sem vanglória, já que é tudo a ser pó.
4. Leio um post de Tchalé Figueira sobre o “descaso” das pessoas em relação à sua exposição “Vinhos e outras coisas”, patente na Galeria PauTcha Arts e remeto-me ao poema de Charles de Baudelaire, “O albatroz”, em que o poeta, metonímia do artista, amarga uma vida difícil quando entre a tropa afoita ao rancho novo-riquista. Recusando-se a figurar o óbvio e a representar o folclórico, Tchalé Figueira, desde as primícias, desafia por uma fruição mais crítica e mais avisada e, resiliente, para não dizer obstinado, insiste estoicamente que sim, tem de ser possível viver na arte e da arte. Um dia, a nossa sociedade estará mais culta e com mais “sense of selfhood” , com gente mais exegética diante da arte. Então, tê-lo-emos nos livros de história da arte e jovens a estudarem a importância do seu traço singular para o “tesouro nacional”, cenário que esperamos não se demore assim tanto. Assim na vida como na arte…
5. Tanta iniquidade quanto abuso um pouco por todo o lado. Temos um tempo de privação e de provação, ó escalavrados. Quem sabe, incorre-se à redentora catástrofe. Fosse outrora e num livro sagrado, isto seria a véspera de dilúvio. E, se alguém prega, só para contrariar, ser isto morabeza, seja pois deus nos acuda, e em decrescente (e 9,e 8,e 7…), chegando a zero, haja Arte para a redenção. Timenti lua ka subi…
*Título de uma exposição do artista plástico Mito Elias (outro que admiro!)