Por: Alcides Fortes*
No dia 4 de Junho, comemorou-se o Dia Nacional Contra o Abuso e Exploração Sexual de Menores em Cabo Verde. A ACRIDES, enquanto coletividade que zela pelos direitos das crianças, designadamente as desprotegidas, admitiu que o Relatório do Ministério Público referente ao período 2017/2018, que aponta para 823 crimes sexuais (no ano judicial 2016/2017), dos quais 523 crimes e abusos sexuais, isto é 38%, foi contra os menores, apresenta uma tendência positiva, por revelar um decréscimo em termos de número de casos comparativamente aos anos anteriores.
Da nossa parte, temos entendimento distinto, pelo que, gostaríamos de apresentar um ‘‘olhar” díspar sobre a criminalidade e algumas variáveis subjacentes ao constructo, nomeadamente a violação sexual de menores, que tem granjeado de forma contínua, ao longo dos últimos anos, um lugar de destaque na sociedade Cabo-verdiana. Face à transversalidade da problemática e às novas formas de violência, propõe-se que este assunto seja objecto de análise aprofundado e de estudo sistemático de entidades que entendem da matéria. Ficar na dependência das estatísticas e o que nos diz o relatório periódico do MP ou do posicionamento desta ou aquela ONG, não acreditamos que seja suficiente, muito menos aceitável.
Esta chaga que afeta milhares de crianças ao longo do globo, muitas delas em Cabo Verde, tornou-se num mal-social sobre o qual é preciso estar atento e buscar forma diferenciada de mitigá-lo. Ora, como se sabe, trata-se de um crime à luz da lei Cabo-verdiana, significando transgressão extrema da confiança, dever de cuidado e poder por parte dos perpetradores. O Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas (em inglês UNICEF) nos artigos 18.º e 34.º, da Convenção sobre os Direitos da Criança, bem assim a Constituição da República de Cabo Verde (CRCV), acautelam nitidamente, o princípio da proteção especial e do respeito ao desenvolvimento integral das crianças, estabelecendo que o Estado, a família e a sociedade em geral, têm o dever de protegê-las, assim como garantir-lhes o direito à saúde, à educação, entre outros.
Se, por um lado, é indubitável o papel do Estado de Cabo Verde na proteção das crianças, com especial atenção às problemáticas que as rodeiam, nomeadamente a luta contra o abandono escolar, o trabalho infantil, maus tratos psicofísicos, etc. Por outro, controversa é a metodologia e abordagem à questão, que do nosso ponto de vista “falha” por valorizar excessivamente os procedimentos jurídicos, desconsiderando práticas psicoterapêuticas devidamente experimentadas em outras latitudes.
No nosso país, infelizmente a abordagem das instituições sobre esta matéria tem-se limitado à esfera sociojurídica da problemática, ou seja, pela tentativa de resolução legal do problema (captura do agressor) e a identificação da questão psicoterapêutica (acompanhamento do(a) agredido (a), que juntamente não encerram plenamente o problema – muito pelo contrário, poderá agravar a situação, ao negligenciar na condução do processo a reinserção dos envolvidos. Pode ser ampla a sensibilidade e vasto o empenho, contudo, não tendo um adequado conhecimento científico da hermética, a probabilidade de se fracassar é colossal. E, a falha processual poderá redundar-se na exaustão emocional da família, provocada pelo sentimento de angústia, raiva, medo e vergonha, que estimulam enormes distúrbios comportamentais alienados à desestruturação psicossocial da vítima.
Com efeito, o pensamento científico desde o século XIX, principalmente aquele proveniente da Psicologia e da Pedagogia, construiu a imagem de vulnerabilidade e consequente necessidade de proteção. À vista disso, quaisquer formas de afronta à integridade física, psíquica e moral das pessoas vulneráveis é uma profunda violação dos direitos fundamentais das mesmas.
Ao evidenciarmos a reinserção dos envolvidos, estaremos, naturalmente, a chamar atenção para uma abordagem mais integradora e humanista. Cada vez mais torna-se necessária uma intervenção não só no(a) agredido(a), como também no agressor(a), que para muitos estudiosos servirá para travar a continuidade do ciclo. Referir que ambos são vítimas e, como tal, necessitam de um tratamento coerente com os preceitos científicos.
Da perspetiva do(a) agredido(a), a probabilidade de ocorrer desfechos negativos graves na vida adulta, resultado do abuso sexual na infância, aumenta em função das características específicas do ocorrido. Normalmente, o abuso sexual de menores, acontece em comunhão com a agressão física, emocional e outras experiências negativas e estressantes na infância, que permitem prognosticar, de forma livre, eventuais consequências negativas na saúde mental em vida adulta. Portanto, requer uma resposta adequada, mediante coordenação ampla e abrangente, por uma equipa multidisciplinar, que aborda adequadamente esta questão tão complexa e exigente. Aludir que pesquisas determinaram que quanto maior o nível de disfunção familiar e exposição do indivíduo em desenvolvimento a maltratos e ao estresse tóxico, maior a sua probabilidade de sofrer problemas psicológicos no longo prazo.
Atendendo que o ser humano é uma unidade indissolúvel de corpo e mente, conforme analisado na psiconeuroendocrinoimunologia, é irrefutável a tentativa do enfrentamento ou coping, isto é a inclinação ou empenho para lidar com exigências do outro (ambiente externo) e do próprio eu (ambiente interno do sujeito). Como qualquer outro estímulo estressante que frequentemente acontece em nossas vidas, os abusos e crimes sexuais são contrariedades da vida que também suscitam um coping. Em consequência, diversos estudos confirmam que existe uma alta correlação entre eles e as tendências de enfrentamento.
É extremamente importante, estar atento aos sinais dessa correlação, tendo em vista que, identificando a tipologia de coping nas vítimas, poder-se-á predizer os resultados psicológicos positivos ou negativos a evidenciar-se a longo prazo. No geral, tendências positivas e construtivas de enfrentamento, como expressar sentimentos e fazer esforços para melhorar a situação, estão associadas a um melhor ajuste. O coping negativo, ou melhor, as disposições negativas de enfrentamento, como comportamentos destrutivos ou evitamento, estão associados ao pior ajuste. No entanto, as inclinações das vítimas podem ser contingenciais, até certo ponto, à disponibilidade de recursos sociais ou materiais sobre os quais as crianças têm pouco ou nenhum controle.
Em Cabo Verde, se concebermos uma pesquisa a questionar a identidade dos agressores sexuais, o mais certo é chegarmos a um elevado grau de convergência de opiniões. Por incrível que se pareça, a psicopatia pode estar na base desses atos hediondos. Assim, a problemática dos crimes e violência sexual de menores deve orientar-nos para debates, fóruns e colóquios especializados, pois, são formas de aproximar os pesquisadores da temática, permitindo introduzir no campo de teorização e interface a práticas criminais, uma concepção distinta daquela que tem atraído e monopolizado a atenção da nossa sociedade e do próprio Estado, em matéria de segurança e proteção das crianças, com o fito de se erguer um ambiente saudável para a vida.
Hoje mais do que nunca, urge encontrar respostas oportunas e coerentes para a protecção das pessoas vulneráveis, designadamente lutar contra a grave violação das crianças que se faz sentir no nosso país, contribuindo para o seu bem-estar psicossocial, pois elas, afinal, constituem o futuro destas Ilhas!
*Doutorando em Psicologia