Por: Arsénio Fermino de Pina
Como era o único especialista no activo na ilha, fiz valer o meu estatuto, mas sem grandes alardes. Comecei por justificar a necessidade de ter mais uma enfermeira para poder ter uma de vela à noite, e mais duas serventes, para meter alguma ordem na enfermaria, no que fui atendido, não obstante a carência de pessoal. Dispensei o colega e fiquei com a esposa que era mãe e tinha algum conhecimento e sensibilidade para crianças. Fui fazendo alguns protocolos e orientações simples para o pessoal, indo explicando as razões das modificações introduzidas, tanto ao pessoal como às mães e acompanhantes. Tive o apoio do amigo Dul (Adriano Brito), um autêntico gentleman no trato, técnico competente chefe da oficina da ENAPOR que foi reparando os berços e até fez dois segundo um esquema que lhe forneci; mais tarde dei-lhe apoio para a criação da Associação dos Combatentes da Liberdade da Pátria. Sensibilizei os directores (tínhamos nessa altura uma direcção colegial e fazia parte dela) para a aquisição de colchões, aliás, de esponja que cortávamos e revestimos de tecido. As mães deixaram de poder cozinhar na enfermaria, dado que passámos a fornecer alimentos às crianças. Quando passámos a utilizar soros adequados para corrigir desidratações, demo-nos conta de que acompanhantes das crianças aumentavam a velocidade dos soros durante a noite provocando a morte de crianças; reunimo-nos com as mães explicando o facto e informando de que as mães que não amamentavam os filhos já não ficavam à noite na enfermaria, nem os acompanhantes; somente duas mães não concordaram e levaram os filhos. Também de manhã não se permitia a presença de acompanhantes e mães na enfermaria por perturbarem a visita clínica. Instituímos vela, sacrifício que as enfermeiras aceitaram por constatarem nítida melhoria de funcionamento e de resultados clínicos, até porque, face a dificuldades ou dúvidas, eu estava sempre disponível para ir à noite à enfermaria. As mães deixaram de ter o pavor anterior face à administração de soros, visto anteriormente se utilizar soro subcutâneo inadequado em casos de desidratações graves – fisiológico e glucosado – que, obviamente, muito raramente surtiam efeito, e comigo as crianças salvavam-se com administração de soros na veia e por via oral. Não existindo ainda a o Oralite da UNICEF/OMS, optei por utilizar sais orais à base de citrato de sódio, cloreto de sódio e glicose, de uma experiência brasileira de que tinha tido conhecimento através de um livro adquirido em Portugal, que a farmácia hospitalar passou a fornecer às mães em papéis, a dissolver em um litro de água. Foi assim que as mães se habituaram a utilizar sais de reidratação oral para prevenir e tratar desidratações, não estranhando depois o Oralite, quando apareceu no mercado.
Tivemos dois desaires no tratamento de kwashiorkor (malnutrição muito grave, geralmente mortal) a quem administrei sangue, por terem anemias de 3 gr% de hemoglobina (Hb). As crianças começavam com sinais de dificuldades respiratórias e taquicardia, e mesmo suspendendo a administração de sangue não recuperavam, o que o pessoal não estranhou porque antes todos os casos de kwashiorkor faleciam. Eliminei a hipótese de tratar-se de incompatibilidade sanguínea, ficando intrigado, sem nunca ter conseguido obter uma resposta cabal à situação, a não ser uma suspeita através de um manual de um nutricionista belga, cujo nome me escapa por ter o manual em Cabo Verde, que tinha experiência dessas situações; afirmava que o kwashiorkor reage mal ao sangue total, embora aceite plasma com anemias de 3 a 5 gr%. Passei a utilizar plasma humano, com resultados espectaculares. Quando pedi plasma, pela primeira vez, informou-me o técnico do Centro de Sangue que não havia e nunca teve plasma no Centro. Expliquei-lhe como obter plasma dos sangues mais antigos que tinha no frigorífico, informando-o ainda de que no futuro poderia ter de lhe pedir papa de glóbulos, explicando-lhe, também, como a obter. Conseguimos salvar alguns casos de kwashiorkor com plasma humano e alimentação forçada; ao fim da terceira ou quarta administração de plasma, alimentação por intubação nasogástrica, fundia-se o edema, o que era bom sinal, e quando a criança sorria, sabíamos que a criança iria salvar-se. O interessante é que nessa altura, devido à eliminação do edema, a anemia era menor e a criança já tolerava sangue total. Com esses sucessos e a minha disponibilidade, o pessoal ficou encantado e passou a confiar inteiramente em mim, sujeitando-se a sacrifícios sem nenhuma compensação financeira, pois as velas, tanto dos médicos como dos enfermeiros, não eram remuneradas. O caso mais aparatoso foi com uma criança dos seus três a quatro anos, vinda da ilha do Maio, de nome Germana, com uma malnutrição gravíssima e duas enormes escaras nas nádegas. Os pais tinham posses e acederam à vontade da filha de se alimentar somente com sumos de fruta de lata, iludidos com o reclame de conter muitas vitaminas. Com o tempo, a criança deixou de aceitar outros alimentos e chegou a essa situação terrível de malnutrição. Como recusava qualquer alimento, entubei-a para a alimentar regularmente – o que não lhe agradava – e ainda beneficiou de algumas amostras que tinha trazido de Lisboa de Cliftol forte (rico em proteínas) – e administrei-lhe plasma humano, além de soros adequados à sua desidratação. Ao cabo de algum tempo, à semelhança dos outros casos, eliminou, de um dia ao outro, o edema, ficando quase pele e osso. Tínhamos chegado a um acordo com ela: como detestava a entubação, aceitou passar a comer se lhe retirasse a entubação, e assim foi. A pouco-e-pouco foi recuperando e as escaras foram curando. Teve alta já com as escaras quase curadas. Dez anos depois, numa visita que fiz à ilha do Maio pedi para a ver. Apareceu-me uma mocetona bem nutrida, sorridente e feliz que não fazia a mínima ideia dos riscos que correu.
Foi por essa altura que a enfermeira chefe me confessou que o Centro de Espiritismo, do Racionalismo Cristão, se tinha manifestado dizendo que o hospital estava mal assistido. Não reagi. Tempos depois, quando acabei com a permanência de mães que não aleitavam os filhos internados ou acompanhantes, a enfermeira voltou à carga – em S. Vicente, a grande maioria da população, mesmo católica ou protestante, frequenta os templos do Racionalismo Cristão – para me informar de que o Dr. Fulano de tal (disse o nome do médico, que omito) se tinha manifestado dizendo que era a enfermaria de Pediatria que estava mal assistida. Aí reagi, respondendo-lhe, calmamente, que devia haver engano porque esse médico era bastante sensato e competente e jamais poderia dizer isso, visto a enfermaria ter, pela primeira vez, a melhor assistência, de um pediatra nacional. Ela deve ter transmitido isso ao chefe do Centro, porque nunca mais se meteram comigo.
Ainda nessa velha enfermaria de pediatria, tive um doentinho de cerca de três anos aparentes, vindo de Santo Antão, malnutrido com uma palidez impressionante, que mal se mantinha de pé. Tratei-o, e todos os dias, como ficava perto da porta de entrada, fazia-lhe carícias na cabeça e tentava falar com ele, mas nunca me respondia, embora parecesse não desgostar das minhas carícias. Perguntei à mãe se era mudo. Que não, que falava pelos cotovelos com a mãe. Um belo dia – ele já estava recuperado e em vias de ter alta – passei por ele, nem olhei para o seu berço e segui em frente. Quando já ia no meio da sala ouvi-lhe dizer: nhô dotor! Uli-me li! Voltei-me e vi-o em pé no berço; exclamei: dja´m panhâ malandro! (já apanhei o malandro). A partir daí passámos a conversar sem problemas. Tinha-se quebrado o silêncio. O facto levou-me a adoptar a expressão ULI-ME LI! no meu primeiro livro publicado. (Continua)