uando os inspetores da Polícia Judiciária (PJ) subiram a bordo do cargueiro AGAT, que havia sido conduzido ao porto de Lisboa por uma corveta da Marinha, tiveram toda a colaboração dos seis tripulantes – dois indianos e quatro paquistaneses – e do comandante indiano. Foi este homem quem indicou o local onde estavam os 49 fardos com quase uma tonelada de cocaína, o que valeria no mercado cerca de 40 milhões de euros. Foi a maior apreensão de 2017 e uma das maiores de sempre de cocaína em Portugal. Os sete asiáticos, todos sem antecedentes criminais e com integração social e familiar nos seus países, foram agora condenados a penas de oito anos e meio de prisão, no caso do comandante e outros dois, e quatro anos e três meses para os restantes. Todos serão expulsos do país por um período de oito anos.
Estes sete homens nunca tinham pisado o território português. Praticamente todos ocultaram à família que estão presos, ou então só revelaram a sua detenção a pessoas muito próximas, como companheiras e irmãos, por temerem as reações sociais muito negativas pois o tráfico de droga na Índia e no Paquistão é motivo de exclusão social. Um dos condenados tem 64 anos, dois têm cursos superiores. A PJ ficou surpreendida com a inexperiência de alguns tripulantes. Quando o barco entrou no porto de Lisboa, sob escolta, foi o cozinheiro que orientou a manobra, com outros tripulantes a não saberem bem o que fazer. O que indicia que foram escolhidos por serem de confiança e não pela experiência no mar.
Em comum os asiáticos têm vários factos. Nenhum tem antecedentes criminais e todos tiveram uma atitude colaborante quando foram abordados e detidos pelas autoridades portuguesas. No meio prisional, revelam um comportamento humilde e isento de problemas disciplinares. Um deles está mesmo a frequentar um curso de língua portuguesa na cadeia. Admitiram praticamente tudo o que ficou provado em tribunal no que diz respeito às rotas e ao local onde foram carregados os fardos. Só não admitiram saber que a mercadoria era cocaína, embora confessassem não ser normal o tipo de transporte que fizeram, sem documentação da mercadoria.
Neste aspeto, os juízes do Tribunal de Lisboa não esconderam a perplexidade perante os depoimentos dos arguidos em tribunal. Não sabiam que era cocaína? O coletivo não acreditou e explica que alguém encomendou, pagou uma soma substancial e organizou o transporte. E só o faria com confiança total na tripulação. “Ninguém arrisca o sucesso de um empreendimento destes sem manter o máximo controlo possível”, pelo que alguns dos tripulantes tinham conhecimento e procuraram “adotar todos os procedimentos necessários ao sucesso do empreendimento”. Além dos sete, no AGAT seguiam ainda mais dez indianos que não foram acusados, por não terem tido participação no transbordo da droga nem ficar demonstrado que sabiam do tráfico.
A investigação da Unidade de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) da PJ foi desencadeada após informações da agência MAOC-N – Maritime Analysis and Operations Centre-Narcotics, que tem sede em Lisboa e monitoriza o tráfico marítimo. O alerta surgiu após o cargueiro sair de Marrocos e seguir de forma errante, pouco habitual, pelo oceano Atlântico. A partir daqui, passou a estar sob suspeita e vigilância. Mais tarde, com os documentos apreendidos a bordo, cheios de dados de navegação, e, nos dias mais próximos da abordagem ao cargueiro, com as fotos colhidas pela Força Aérea foi possível estabelecer ao pormenor as rotas do barco durante sete meses.
Droga carregada em alto-mar
O itinerário foi estabelecido pela investigação e comprovado em tribunal. Entre fevereiro e setembro, o cargueiro com 115 metros de comprimento atracou em Casablanca, Las Palmas e Agadir, de onde saiu no dia 28 de setembro de 2017. Foi durante este período de oito meses que terão sido dadas as indicações para rumar à costa do Suriname para carregar a cocaína. Por quem? Não foi possível apurar na investigação. Quando a embarcação seguiu rumo à costa sul-americana a bordo seguiam os sete tripulantes agora condenados, com a sua integração na tripulação a ocorrer em diferentes momentos.
Durante 30 dias o navio com bandeira das Ilhas Comoros navegou no oceano Atlântico sem nunca aportar até ser intercetado por uma corveta da Marinha portuguesa a 407 milhas náuticas (753 km) de Lisboa. Antes, carregaram os 49 fardos com os quase mil quilos de cocaína em alto-mar a partir de uma outra embarcação, cujos quatro ou cinco tripulantes não foram identificados. Nessa operação, no dia 11 de outubro de 2017, o cargueiro ficou às escuras, retomando depois a navegação afastando-se da costa do Brasil e do Suriname. Ao longo de todo o percurso o comandante indiano foi mantendo contacto, por telefone satélite, com os mandantes da operação, nunca identificados. A meio da viagem mudaram os fardos de local, colocando-os nos tanques de lastro, e alteraram em diversas ocasiões a rota. Por vezes, o barco parou durante horas. A passagem da droga para outra embarcação não acontecia e, por desconhecerem quando iria acontecer, as autoridades portuguesas procederam à sua interceção.
A bordo da corveta seguiam fuzileiros e dois inspetores da PJ. Na primeira noite, houve indecisão sobre se deveria ser efetuada logo a abordagem. Esperaram mais um dia para ver se era feito o transbordo, o que permitiria intercetar também os destinatários da cocaína. Na segunda noite, como o AGAT passou a navegar em direção a sul, na costa de Marrocos, avançou a operação. Dada a envergadura do barco, não era possível um assalto de surpresa. Quando abordado, o cargueiro parou e a tripulação lançou a escada para as autoridades portuguesas subirem a bordo. Sem resistência.
Sob a escolta da Marinha, deram entrada no porto de Lisboa às 04.00 do dia 29 de outubro de 2017. A PJ subiu a bordo e procedeu às buscas. A cocaína já estava fora dos tanques, não havia nenhuma carga comercial a bordo e o comandante colaborou com as autoridades portuguesas.
Cargueiro fica para Estado Português
O acórdão, lido no dia 22 de março em Lisboa, explica de forma pormenorizada que o comandante e outros dois tripulantes com mais responsabilidades estavam conscientes do que iam fazer, sabiam que iam transportar cocaína. Por isso foram condenados a penas de oito anos e meio, mas não na forma agravada. Não foi possível provar que o fizessem para receber elevadas quantias em dinheiro, como acusava o Ministério Público, falando numa verba superior a 25 mil euros para cada.
Os outros quatros tiveram penas inferiores, de quatro anos e três meses cada, dado que o coletivo de juízes considerou que inicialmente não saberiam o que iriam transportar e, apesar de acreditar que após o carregamento em alto-mar tomaram consciência, condenou-os por tráfico de estupefacientes em cumplicidade, alterando de forma não substancial os factos da acusação que apontava para a coautoria, mais grave e que pressupõe conhecimento inicial dos objetivos da viagem.
Os juízes decidiram ainda que o cargueiro AGAT reverte para o Estado Português. A empresa proprietária, a Capital Shipping, registada no Panamá em janeiro de 2017, veio reclamar a sua devolução, mas o tribunal considerou que não podem alegar que desconheciam o uso do barco já que durante sete meses nada transportou a não ser a cocaína. Durante esse período, não tentaram comunicar com o cargueiro nem dar alerta sobre a eventual apropriação do mesmo, lembrou o juiz-presidente. Como ficou provado que o barco foi essencial para o tráfico, o tribunal negou a pretensão e declarou o perdimento do AGAT em favor de Portugal.
Fonte: DN