Por: Natacha Magalhães
Natal e fim de ano são tempos das já tradicionais e aguardadas mensagens institucionais. A do primeiro ministro e a do Presidente da República. Os dois foram poupados nas palavras, num ano em que se esperava mais. Um, otimista, pediu paciência aos mais jovens. O outro, que sabe que tivemos dias difíceis, augura melhorias, mas deixa alguns recados: é preciso que se olhe para todos e para o todo. Não se pode perder a humanidade que habita em nós.
1.A desumanização. Comecemos pelo fim. O discurso do PR. Para já é notório que Jorge Carlos Fonseca foi comedido com as palavras. Talvez tenha sido esse o mais curto discurso do PR por ocasião da passagem de mais um ano e inicio de outro. Mas isso não quererá dizer que o PR tenha dito pouca coisa. Sim. Talvez não o tenha feito claramente como já o fez, alias, em diversas outras ocasiões, mas há coisas que, não sendo claras ao primeiro à primeira leitura, merecem um olhar mais atento. Fonseca trouxe vários recados. “Nós desumanizamos quando nos desinteressamos do destino dos outros, quando os problemas graves dos outros não encontram eco em nós, quando a miséria, a afronta e a humilhação que os outros experimentam em nós não causa sofrimento ou indignação alguma!”. O PR fala essencialmente da dignidade humana que vem sendo posta em causa, não apenas essa dignidade cuja hipótese jamais se concretizará quando não se tem pão, casa e trabalho, mas também as outras dignidades. Não se pode falar de dignidade quando muitos trabalhadores continuam sendo afrontados e humilhados nos seus postos de trabalho e nas suas carreiras por quem deveria dar exemplos de liderança e não o faz; quando cidadãos são humilhados e mal tratados em instituições que prestam serviço público ou quando alguém tem que recorrer a greve de fome para fazer valer seu direito de ir e vir; quando não merecemos a mesma indignação por parte de quem deve dispensar o mesmo tratamento dado aos que por cá vêm e vão; não há dignidade nenhuma quando pessoas em risco de vida são transportadas como se de coisas de tratassem; não há dignidade quando revindicações e manifestações de insatisfações de cidadãos não são ouvidas ou, pior, desmerecidas e apoucadas. Não somos humanos quando tudo isso nos passa ao lado. Se não nos afetamos, se não nos incomoda, então o que somos?
2. O Mundo rural. “É preciso que não tenhamos ilusões, só a melhoria de condições de vida nas zonas rurais tem a capacidade de diminuir a enorme pressão sobre os grandes centros urbanos… O mundo rural não pode ser perspectivado apenas numa dimensão económica e financeira, mas também social e cultural” Mais uma vez, o PR foi assertivo. Jorge Carlos não esqueceu o mundo rural. Pede que se olhe, com seriedade, para o mundo rural. E é uma tremenda coincidência (ou talvez não) que o PM começa o seu périplo do novo ano precisamente pelo interior de Santiago. Maravilhoso mundo rural. A saída para reduzir as assimetrias e os níveis de pobreza do país, “irrazoáveis”, como o lhes chamou o presidente. Perde-se imenso tempo em discursos infrutíferos; discute-se tanto essa regionalização que muitos nem sabem pronunciar, quanto mais entender; briga-se por protagonismos e paternidades da melhor proposta. Porém, o essencial é isso: ter o poder mais próximo das pessoas, implementar medidas de politicas e caráter local, que se traduzam em melhoria da vida das pessoas e no crescimento do país, crescimento esse que, como disse o PR, “só ganha sentido quando é acompanhado de medidas que assegurem vantagens globais para a sociedade e para todos os cidadãos.”
3. Transportes. “É uma questão com enorme impacto social, mas também económico, pois um mercado interno relativamente pequeno é mais reduzido ainda quando ele fragmentado. Uma coisa liga à outra. Não há economia sem transportes. Vários empreendimentos nacionais só se viabilizam na lógica de uma circulação célere, previsível e regular dos bens e serviços entre as várias ilhas do nosso Cabo Verde”
4. Emprego vs desemprego. Nesse ponto, o PM é otimista. Prognostica o crescimento da economia do país e a criação de mais empregos. Sabe que são os jovens os mais afetados e ansiosos e pede-lhes paciência porque “dois anos e meio de governação é pouco tempo para resolver os imensos problemas com que se depara a juventude.” A essa altura, mais do que anunciar soluções contempladas no Orçamento de Estado, sabe o PM que terá que resgatar a confiança dos pouco mais (ou menos) de onze mil jovens desempregados (Estatísticas do Mercado de Trabalho, IMC 2017), uma grande parte deles, licenciados, ou seja, com expetativas altas. Temos que reconhecer, porém, que são ambiciosas e promissoras as medidas plasmadas no OE2019, com destaque para os 78 milhões de ECV para os programas start up jovem e Empreendedorismo Jovem. Todavia terão que sair do papel. Mais ação. Menos discursos. E mais: terão que chegar a todos e a todas as Ias. Caso contrario, a paciência que Ulisses pede aos jovens pode se esgotar.
5. Violência. A praticada contra mulheres em “proporções inaceitáveis”. E o abuso sexual de menores que “mancha a nossa sociedade”. Finalmente alguém se lembrou de falar desses temas que, ás vezes, nos parecem ser tabús em certos meios. Mas haveria outros. O desaparecimento de pessoas, sem que até hoje tenhamos alguma informação. Ou os casos de assedio denunciados por jovens universitárias. Custa compreender alguns silêncios perante questões tão sérias. E voltamos ao inicio: “Nós desumanizamos quando nos desinteressamos do destino dos outros, quando os problemas graves dos outros não encontram eco em nós…”.
6. Uma receita para a felicidade. Li num jornal eletrónico que foi realizada, em Lisboa, uma webinar dedicada ao tema da felicidade, a qual se chamou de “Ideias para um Portugal mais feliz”. Por outro lado, o Papa Francisco, clarividente como sempre, diz que é melhor viver como ateu do que ir à igreja e odiar os outros. Por cá, tanto uma coisa como a outra se aplica. Precisamos de uma receita para a felicidade, capaz de eliminar certos ódios e intolerâncias. Claro que a felicidade é algo subjetivo. Mas há coisas que terão que coexistir para que sejamos pessoas mais felizes. Em democracia a receita terá que mesclar emprego, a redução das desigualdades, diminuição da pobreza. Coloque-se ainda a descentralização, a transparência e a boa governação. Juntem-se-lhes liberdade de expressão e respeito pela opinião do outro. Individualmente, equilibre-se, se dê ao prazer de sentir prazer com as coisas imateriais da vida. E voilá: uma nação feliz.