Por: João Resende-Santos, PhD[2]
A assinatura do “Acordo do Estatuto do Pessoal” (SOFA, do inglês ‘Status of Forces Agreement’) entre Cabo Verde e os Estados Unidos da América (EUA) gerou um intenso debate e controvérsia no discurso público em Cabo Verde. Muitos artigos de opinião surgiram nos meios de comunicação social do país, a maioria em oposição ao SOFA. Como o presidente Fonseca enfatizou no seu discurso à nação, o debate é saudável e necessário numa democracia. Infelizmente, muitas das questões veiculadas nos debates e opiniões sobre o SOFA são desinformadas, exageradas e especulativas. A questão tornou-se politizada e partidarizada e revela dois grandes pontos de incompreensão: o primeiro é a visão falsa de que se trata de um acordo de base militar, violando assim a Constituição nacional. O segundo é que é uma violação à soberania do país, também considerada inconstitucional. O objectivo deste ensaio é esclarecer essas duas questões.
O contexto mais amplo do SOFA
Renato Cardoso destacou a importância fundamental da paz e segurança externas para o desenvolvimento de um país. Como um pequeno estado insular, frágil, vulnerável e externamente dependente, Cabo Verde tem navegado no sistema internacional desde 1975 para alcançar um sucesso razoável a nível do progresso socioeconómico e na construção de uma democracia estável. Fê-lo através da sua diplomacia económica astuta, assim como de parcerias internacionais de desenvolvimento. O seu progresso socioeconómico e a paz social, no entanto, foram também possíveis devido à sua diplomacia pragmática e parcerias internacionais para garantir a sua segurança nacional.
Hoje, Cabo Verde enfrenta muitas ameaças reais à sua segurança nacional, principalmente ameaças não tradicionais como o tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e crime organizado internacional. A questão crítica da segurança nacional do país é descurada no debate sobre o SOFA. Este acordo não é uma questão isolada. É um elemento de uma iniciativa de cooperação em segurança internacional muito mais ampla. Como o presidente Fonseca observou correctamente, debates e avaliações sobre vantagens e desvantagens do SOFA e esses tipos de cooperação de segurança, seus benefícios e riscos, só podem ser avaliados no contexto dos reais desafios de segurança em Cabo Verde e as opções políticas disponíveis para lidar com eles.
Para um microestado, com um elevado nível de vulnerabilidade e dependência externas, e uma economia altamente aberta, a dimensão externa foi sempre determinante, para o bem e para o mal. Cabo Verde carece de recursos, tecnologia e competências para responder a essas necessidades, especialmente os desafios de segurança reais do seu vasto território marítimo desprotegido sobre o qual nunca conseguiu afirmar a sua soberania. Como um estado micro insular sem a capacidade para assegurar as suas múltiplas necessidades de segurança nacional, Cabo Verde tem de confiar em parceiros estrangeiros não apenas para o financiamento do desenvolvimento mas também para a assistência na segurança. A única opção é fazer parcerias com outros países que tenham interesses comuns em enfrentar os desafios de segurança que o arquipélago enfrenta.
Muito antes das negociações bilaterais sobre o SOFA, que começaram em 2008, os EUA e Cabo Verde já cooperavam em questões de segurança militar. A sua cooperação incluiu formação militar, exercícios conjuntos, partilha de informação de segurança, missões humanitárias, bem como cooperação policial e judicial. Navios de guerra navais dos EUA visitam Cabo Verde desde o final dos anos 70 do século passado.
Recentemente, como alguns observadores correctamente notaram, a política dos EUA em relação a Cabo Verde e ao resto de África tem-se concentrado cada vez mais em questões de segurança militar. Durante a última década ou mais, a cooperação militar e de segurança entre Cabo Verde e os EUA tem crescido – assim como uma cooperação semelhante com muitos países europeus tem crescido. O aumento da cooperação em segurança tem sido uma grande prioridade para Cabo Verde, os EUA e os países europeus desde os exercícios militares de 2006 em Cabo Verde pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A preocupação mútua destes países tem sido os muitos desafios de segurança não tradicionais nas sub-regiões da África Ocidental e do meio do Atlântico.
Deve ser realçado que para os EUA, o seu maior interesse e preocupação em segurança com Cabo Verde é o tráfico internacional de drogas, especificamente a crescente utilização de Cabo Verde como um importante ponto de trânsito. Esta é, infelizmente, a realidade de Cabo Verde e a motivação mais importante a impulsionar a política dos EUA. Os EUA não têm interesse em bases militares em Cabo Verde. Não precisa de uma. Uma análise cuidadosa de todos os tipos específicos de actividades bilaterais de cooperação em segurança militar, bem como uma análise da política dos EUA e dos documentos disponíveis publicamente, mostrará a preocupação dos EUA com esses desafios de segurança não tradicionais. Grande parte da cooperação em segurança tem-se concentrado na segurança marítima, uma necessidade crítica de Cabo Verde, na cooperação com a guarda costeira, na inteligência militar, na busca e salvamento como também missões humanitárias. De muitas maneiras, o SOFA é simplesmente uma estrutura legal para gerir essa cooperação em segurança já em funcionamento.
O que é o SOFA… e o que não é?
É um acordo legal que os EUA assinam com todos os países com quem tem actividades de cooperação em segurança militar. Os EUA assinaram mais de 100 desses acordos SOFA, muitos dos quais datam dos anos 1950. O SOFA não é um acordo de cooperação em segurança militar, mas geralmente vem como parte de tais acordos.
Os EUA têm um SOFA com toda a OTAN e outros aliados militares, como o Japão e a Coreia do Sul. O SOFA é assinado com qualquer país com o qual os EUA tenham qualquer forma de cooperação em segurança militar, quer tenha uma base militar ou tenha actividades de cooperação temporárias, específicas e ocasionais.
O único objectivo do SOFA é definir o estatuto legal do pessoal e da propriedade dos EUA envolvidos na cooperação em segurança militar num país estrangeiro. O SOFA abrange muitas questões específicas, como a entrada e saída, procedimentos alfandegários, tributação, uso de uniformes. No entanto, o item mais notável – e controverso – de todos os SOFA, incluindo o assinado com Cabo Verde, é a cláusula que dá aos EUA – não ao país estrangeiro – jurisdição legal sobre o pessoal militar e não militar dos EUA acusado de conduta criminosa no país estrangeiro.
Os SOFA impedem o pessoal dos EUA de julgamento criminal por tribunais estrangeiros. Mas não dá imunidade e impunidade ao pessoal dos EUA para cometer crimes em países estrangeiros; apenas estabelece que, se o fizerem, serão processados num tribunal militar ou federal dos EUA. Em resumo, o SOFA define qual o país que tem jurisdição legal em casos que envolvam crimes cometidos por funcionários dos EUA no país estrangeiro.
Um ponto muito importante deve ser realçado. O SOFA não concede imunidade incondicional ao pessoal dos EUA que cometa, ou que alegadamente tenha cometido, um crime no país de acolhimento. Apenas define que serão os EUA, e não o país anfitrião, a conduzir o tribunal criminal e a impor a punição.
Como discutimos abaixo, o SOFA é simplesmente uma extensão do tipo de acordos internacionais que todos os países assinam para definir o estatuto legal e político dos seus diplomatas. Ou seja, o princípio da imunidade diplomática é alargado ao pessoal militar e não militar envolvido em actividades de cooperação bilateral. O SOFA assinado com Cabo Verde e com todos os outros países incorpora simplesmente os princípios da Convenção de Viena sobre Privilégios Diplomáticos.
Porque é que os EUA exigem que todos os países com cooperação em segurança militar assinem um SOFA? Muito simplesmente porque a preocupação dos EUA foi sempre a credibilidade e imparcialidade do sistema de justiça, procedimentos do tribunal, práticas de processo criminal em países estrangeiros. Mesmo que o sistema judicial de um país estrangeiro possa ser independente e robusto, os padrões, normas e procedimentos legais podem ser diferentes daqueles dos EUA.
Embora o sistema de justiça criminal em Cabo Verde possa ser satisfatório hoje, nem todos os países têm um sistema judicial que assegure julgamentos justos, defesa e processo criminal robustos, sistemas de tribunais independentes e profissionais, estado de direito e transparência. A preocupação dos EUA é garantir um julgamento justo do seu pessoal envolvido numa ofensa criminal num país estrangeiro. Para uma superpotência com presença militar em mais de 150 países, é uma preocupação natural.
Existem algumas questões e disposições fundamentais em todos os acordos SOFA que se deve prestar atenção – questões que estão a ser descuradas nos debates sobre o SOFA Cabo Verde. A primeira é se o SOFA regulamenta actividades “temporárias” ou cooperação permanente. Esta última geralmente indica cooperação envolvendo bases militares, alianças ou alguma outra actividade estruturada. A segunda questão é se as disposições do SOFA regulamentam o comportamento do pessoal dos EUA enquanto apenas “em serviço”, ou se tal linguagem não existe no acordo. Terceira, e relacionada, é se o acordo cobre apenas delitos “criminais” ou delitos civis e criminais. Uma quarta questão é se o SOFA abrange tanto o pessoal pessoal militar como não militar, seus familiares, outros envolvidos na actividade de cooperação mas não contratados pelos militares dos EUA, e nacionais e cidadãos do país anfitrião envolvidos na actividade.
Termos e condições no SOFA Cabo Verde-EUA
O SOFA Cabo Verde-EUA tem 6 páginas, com quinze artigos. É um SOFA padrão e comum que os EUA já assinaram com vários países. Não é um acordo complexo. Abrange as mesmas áreas e questões que todos os outros SOFA deste tipo de cooperação. Uma leitura cuidadosa do texto do acordo revela o seguinte:
O SOFA Cabo Verde rege o estatuto legal do pessoal dos EUA “temporariamente presente” em Cabo Verde, apenas com o consentimento de Cabo Verde e envolvido na realização de actividades comuns de cooperação em segurança. O SOFA identifica actividades específicas de interesse comum entre Cabo Verde e os EUA – “visitas de navios, exercícios temporários, actividades humanitárias e outras actividades mutuamente acordadas”.
O SOFA define cuidadosamente os indivíduos regidos pelo acordo como “pessoal” e “pessoal contratado” dos EUA, especificamente militares dos EUA e funcionários civis do Departamento de Defesa (DD) dos EUA e todas as empresas e funcionários não cabo-verdianos contratados pelo DD. Muito importante é o facto do SOFA não incluir o pessoal e cidadãos cabo-verdianos que participam nas actividades ou contratados pelo DD.
A disposição crítica no SOFA declara que Cabo Verde “autoriza os Estados Unidos a exercer jurisdição criminal sobre o pessoal dos EUA”, enquanto em território cabo-verdiano, no caso de um alegado delito criminal. Tal como acontece com os privilégios similares que Cabo Verde concede aos membros do corpo diplomático que residem em Cabo Verde, os militares dos EUA, como os diplomatas dos EUA, recebem “imunidade” de acusação no sistema judicial de Cabo Verde.
O SOFA especifica que o sistema judicial dos EUA será responsável pela acção penal, qualquer que seja o caso que envolva tais incidentes criminosos por funcionários dos EUA. O SOFA estipula que os EUA informarão Cabo Verde de todos os processos criminais; que os representantes de Cabo Verde podem observar os procedimentos nos EUA; que as vítimas e testemunhas cabo-verdianas podem participar em processos judiciais nos EUA; que a investigação dos EUA levará em conta os relatórios e investigações fornecidos por Cabo Verde.
Um aspecto importante do SOFA Cabo Verde é que ele não especifica se cobre apenas situações de suposta conduta criminosa, enquanto o pessoal dos EUA está em serviço ou não.
Outra disposição importante permite que os militares dos EUA, enquanto em serviço, usem uni- formes e carreguem armas, se autorizados por seus superiores. No entanto, o SOFA de Cabo Verde não especifica quando, onde e em que condições o pessoal dos EUA pode transportar armas. Por exemplo, o acordo não especifica se o pessoal dos EUA só pode transportar armas dentro de campos e instalações, somente durante as actividades da missão, ou em qualquer lugar, a qualquer momento.
Outras disposições do SOFA incluem elementos e privilégios que são práticas comuns em Cabo Verde, mas agora concedidas ao pessoal dos EUA enquanto em missão em Cabo Verde. Elas não são novas. Estas incluem isenções alfandegárias, incluindo isenções de inspecções, isenção de imposto no rendimento e vendas, reconhecimento da carteira de motorista dos EUA e liberdade para os EUA em contratar qualquer empresa cabo-verdiana para bens e serviços sem qualquer restrição governamental, incluindo o fornecimento desses bens e serviços ser isento de taxas. O pessoal dos EUA envolvido nestas actividades de cooperação pode entrar em Cabo Verde sem um visto ou passaporte, usando a sua identificação oficial dos EUA e acompanhando a missão oficial. Como observado, muitas destas disposições são práticas e privilégios comuns que Cabo Verde concede aos membros do corpo diplomático, investidores estrangeiros e estrangeiros.
Uma disposição específica para todos os SOFA envolve a autorização para que os militares dos EUA operem no seu próprio espectro de rádio e frequências no território do país anfitrião.
O SOFA assinado entre Cabo Verde e os EUA não é um acordo de base militar, nem um acesso a direitos de base militar, nem um acordo de cooperação militar separado.
Finalmente, o SOFA pode ser alterado por acordo mútuo. Pode ser denunciado por qualquer um dos lados com um ano de antecedência.
Qual o significado do SOFA?
A decisão das autoridades cabo-verdianas em negociar, assinar e ratificar o SOFA é uma expressão suprema de responsabilidade e sentido de estado, cujo objectivo é fortalecer a segurança nacional de Cabo Verde. O SOFA é apenas uma parte – nem mesmo a parte mais importante – da iniciativa maior de trazer mais recursos e parcerias para salvaguardar a paz e a segurança externas essenciais para o progresso socioeconómico e independência do país.
No entanto, o acordo SOFA tem sido objecto de muita especulação, desinformação e afirmações exageradas. De muitas maneiras, essas controvérsias e críticas são semelhantes em quase todos os países que assinaram um SOFA. Os críticos do SOFA Cabo Verde fizeram três acusações específicas. Primeiro, eles argumentam que o SOFA é um acordo de base militar e, portanto, viola a Constituição. Essa afirmação é factualmente incorreta, conforme já referido. Em segundo lugar, mais grave, eles especularam que o SOFA dará aos militares dos EUA a capacidade e a imunidade para assassinar cidadãos cabo-verdianos, incluindo o presidente do país, sem enfrentar processos criminais. A terceira crítica foi que o SOFA é uma violação da soberania de Cabo Verde que, argumenta-se, também viola a Constituição.
O SOFA, como qualquer outro tratado internacional assinado por Cabo Verde, não está isento de riscos e desvantagens. Apesar das muitas opiniões desinformadas e alegações exageradas, muitos dos problemas são reais. Eles não são triviais. Esses riscos, no entanto, não são nem extraordinários nem exagerados, como afirmam os críticos, nem estão além de medidas simples para mitigá-los. Estes riscos e desvantagens devem ser julgados e ponderados de acordo com os seus benefícios e vantagens, a probabilidade e a capacidade de gestão dos riscos, e as opções disponíveis para Cabo Verde para a segurança nacional.
As forças armadas dos Estados Unidos são uma das forças militares mais altamente treinadas, profissionais e disciplinadas do mundo. Possuem estruturas de comando e controlo rigorosas e eficazes. O sistema de tribunais militares dentro das forças armadas dos EUA está entre os mais eficazes e rigorosos. No entanto, embora tenha um nível elevado de profissionalismo, isso não garante que os indivíduos em suas fileiras não se envolvam em acções criminosas ou transgressões civis, seja nos Estados Unidos ou num país estrangeiro.
As forças armadas de Cabo Verde são profissionais e disciplinadas. No entanto, isso não impediu os trágicos acontecimentos de Monte Tchota em 2016. De facto, hoje, milhares de militares dos EUA estão a ser julgados por tribunais nos EUA e em outros países, e muitas dezenas a cumprir sentenças em prisões estrangeiras, por um amplo espectro de ofensas desde o homicídio, à condução com embriaguez, à conduta desordeira.
Nenhum outro SOFA foi tão polémico quanto o SOFA Japão-EUA, que data da década de 1960. Os EUA possuem grandes bases militares no Japão, um importante aliado militar. Uma das maiores bases militares é em Okinawa. A má conduta dos militares dos EUA em Okinawa gerou raiva, oposição e ressentimento entre a população local. Desde a década de 1970, houve mais de 500 incidentes graves de actos criminosos cometidos por militares dos EUA e civis a trabalhar na base de Okinawa, incluindo casos de abuso sexual, assassinato e roubo.
A acusação de que o SOFA permitirá aos militares americanos cometer homicídio, incluindo o assassinato de líderes políticos nacionais, embora exagerada e infundada, não pode ser descartada. O SOFA permite que o pessoal militar dos EUA carregue armas. No entanto, não está claro porque é que os oponentes do SOFA encaram esses riscos de homicídio como necessariamente mais altos com o pessoal do SOFA, em comparação com diplomatas (que têm a mesma imunidade), criminosos comuns, turistas, estrangeiros residentes em Cabo Verde, ou mesmo pessoal militar de Cabo Verde, como nos recorda a tragédia de Monte Tchota. Em mais de uma ocasião, membros da Polícia Nacional foram processados por comportamento criminoso, incluindo assalto à mão armada. Mais de 600.000 turistas entram em Cabo Verde todos os anos, sem necessidade de visto, triagem ou informação sobre quem são.
A segurança pessoal do presidente do país, ou de qualquer cidadão comum, está, provavelmente, mais em risco dos criminosos comuns e delinquentes na Praia do que do pessoal e diplomatas dos EUA. Os debates sobre esses riscos no âmbito do SOFA devem basear-se em avaliações fundamentadas e ponderadas. Mais importante, uma abordagem mais construtiva é recomendar emendas para mitigar os riscos no SOFA, tais como termos e controlos mais específicos relativos ao porte de armas, enquanto se obtém os benefícios de segurança nacional de tal cooperação internacional.
É de realçar novamente que o SOFA não concede imunidade incondicional de acusação e prisão no caso de um crime cometido por funcionários dos EUA. O SOFA somente protege o pessoal dos EUA contra acusação e prisão num país estrangeiro. O pessoal dos EUA que cometa crimes será acusado num tribunal dos EUA e preso nos EUA, se considerado culpado.
Soberania em Relações Internacionais
A disposição do SOFA na qual Cabo Verde cede o seu direito de processar no seu território o pessoal dos EUA que comete um crime é, ipso facto, uma instância em que um país cede o seu direito soberano de processar um cidadão estrangeiro que cometa crime no seu território. O que é que isso significa, no entanto, e como ela difere de todas as outras práticas diplomáticas desde 1975? Como o presidente Fonseca observou correctamente, tal disposição não é nova para a ordem jurídica do país e tem sido uma prática normal no mandato constitucional do governo ao assinar tratados internacionais.
O artigo 12 da Constituição cabo-verdiana estabelece o direito constitucional de celebrar acordos internacionais e estabelece que todas as convenções adoptadas por organismos internacionais nos quais Cabo Verde seja membro se tornam automaticamente parte da sua ordem jurídica interna. Como tal, as críticas de que o SOFA infringe a soberania são baseadas num argumento enganoso para desviar ou camuflar outras preocupações.
A questão da soberania é complexa. No entanto, a soberania nunca foi absoluta ou incondicional, mesmo para os estados mais poderosos do mundo. Aqueles que criticam o SOFA como violando a soberania de Cabo Verde demonstram uma incompreensão básica da natureza e prática da soberania nas relações internacionais. Eles vêem a soberania como soma zero, como um princípio dicotómico que ou existe ou não existe. Para todos os Estados, os fortes e os fracos, ricos e pobres, a participação na vida internacional para alcançar os seus interesses nacionais exige aceitar limitações à sua própria soberania. Se Cabo Verde cedeu uma parte da sua soberania no SOFA, fê-lo pelo objectivo nacional importante de fortalecer a segurança nacional e proteger a sua soberania nacional.
Se a soberania é vista, incorrectamente, como o direito absoluto de um país em decidir por si próprio a sua política interna e externa, e se conduzir no mundo como desejar, sem considerar as políticas e preferências de outros estados ou sem consideração pelas regras e normas internacionais, esse tipo de soberania nunca existiu no mundo. Na prática, a soberania de todos os estados é condicional. Cada estado no sistema internacional, de uma forma ou de outra, concede ou condiciona – voluntariamente – partes da sua soberania através dos tratados, transações e participação em assuntos internacionais em busca dos seus interesses nacionais.
Como observado, a diplomacia moderna baseia-se no requisito básico de que cada estado renuncie à sua soberania sobre os representantes diplomáticos e propriedades de outros estados em seu território. Nenhum país considerou estas práticas – como a assinatura de acordos internacionais para assumir certas obrigações e limitações para fazer o que lhes agrada – como inconstitucionais. As únicas questões pertinentes devem ser se os países estão a ser coagidos a ceder a sua soberania e se estão a obter benefícios específicos e a defender os seus interesses nacionais em troca de desistir do direito absoluto de fazerem o que quiserem.
Se o SOFA infringe a soberania e prejudica a Constituição, como argumentam os críticos, o mesmo se aplica a todos os outros tratados e convenções internacionais assinados por Cabo Verde. Desde 1975, Cabo Verde tem sido signatário de numerosos tratados e obrigações internacionais que exigem que o país ceda, limite ou condicione a sua soberania absoluta sobre numerosas políticas, leis e regulamentos nacionais – da política comercial, à política fiscal, direitos humanos, normas jurídicas, circulação de pessoas e bens, através das suas fronteiras às regras da guerra.
Cabo Verde, como todos os outros estados, cedeu e condicionou aspectos importantes da sua soberania para alcançar objectivos e benefícios específicos no sistema internacional. O SOFA faz parte da Convenção de Viena, da qual Cabo Verde é membro. Cabo Verde é também signatário da Convenção de Genebra, do Tratado de Não Proliferação Nuclear, do Tribunal Penal Internacional, do Acordo de Paris de 2015 para combater as alterações climáticas, da CEDEAO e de muitos outros.
Em 2008, Cabo Verde tornou-se o 152º membro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Para conseguir obter os benefícios da adesão a essas regras de comércio internacional, Cabo Verde, como qualquer outro membro, teve que ceder aspectos críticos da sua soberania nacional para determinar a sua própria política comercial, política económica nacional, política de investimento estrangeiro e política aduaneira.
Cabo Verde assinou o Acordo de Parceria Especial (APE) com a União Europeia que especifica certos compromissos e reformas políticas que deve adoptar. Seja no APE, na CEDEAO ou na OMC, Cabo Verde cedeu elementos críticos da soberania nacional, forçando-se a alterar ou corrigir leis e regulamentos nacionais para cumprir com as normas e padrões internacionais. Os acordos de pesca com a União Europeia obrigam Cabo Verde a ceder a sua soberania sobre o seu território e recursos marítimos.
Os muitos acordos de financiamento para o desenvolvimento de Cabo Verde com o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Africano de Desenvolvimento tiveram sempre requisitos específicos que restringem o seu exercício incondicional de soberania sobre a sua política fiscal, política comercial, regulação nacional, etc.
Os muitos empréstimos concessionais e acordos de linhas de crédito assinados com Portugal – quase todos os quais foram apoios vinculados, ou apoios com condições – restringiram a liberdade de Cabo Verde de decidir como o dinheiro pode ser usado, quais as empresas a contratar, onde os bens e serviços podem ser adquiridos, etc. O acordo monetário com Portugal, em apoio à indexação do escudo cabo-verdiano ao euro, condiciona a capacidade de Cabo Verde livremente determinar a sua política monetária.
Ao facilitar a entrada de turistas, Cabo Verde cedeu o tradicional direito soberano de escrutinar, seleccionar e regular o movimento de pessoas em toda a sua fronteira nacional. Há muitos outros exemplos.
A questão não é se a soberania é abandonada ou condicionada de alguma forma. Sempre é. A questão é o que é que os países estão a ganhar fazendo isso e que opções têm ao participarem no sistema internacional em busca dos seus próprios interesses nacionais?
É apropriado que o país pondere cuidadosamente as suas principais decisões políticas, como o SOFA e a cooperação externa em segurança militar, e avalie as vantagens e desvantagens de opções alternativas. Cabo Verde enfrenta muitos desafios políticos e grandes questões nacionais, como a regionalização, dívida externa insustentável, aumento da desigualdade social, que merecem uma análise igualmente intensa e cuidadosa. Estas não são questões que devem ser politizadas ou tratadas com exageros, desinformação e afirmações infundadas.
Um debate mais sério e responsável, uma crítica mais construtiva do SOFA deve concentrar-se em cláusulas e termos específicos que exigem emenda, esclarecimento ou aprimoramento – como a questão das condições sob as quais o pessoal pode transportar armas, obrigações em serviço ou em folga, compensação para as vítimas, etc.
Muitos países alteraram o seu SOFA, e os EUA mostraram flexibilidade em tais renegociações. De um modo mais geral, o SOFA deve ser usado como uma oportunidade para os cidadãos, formadores de opinião e líderes políticos reflectirem mais amplamente sobre o carácter e os desafios das relações externas e a segurança nacional de Cabo Verde.
[1] Aceda à versão em língua portuguesa do SOFA aqui.
[2] Professor de Estudos Internacionais, Universidade de Bentley, Waltham MA, EUA. Neste momento, está a escrever um novo livro sobre as relações externas de Cabo Verde desde 1975.