Por: José Manuel Araújo
Entre as ilhas de Santo Antão, S. Vicente e São Nicolau, pode-se notar que a grande proximidade geográfica mas sobretudo, os seus processos de povoamento e desenvolvimento plenos de compromissos mútuos, são os principais engenhos que recortam o perfil das suas sociedades.
Acrescenta-se a essa grande proximidade geográfica, o posicionamento territorial do espaço abrangido por elas, que ditou a formação dum grupo de ilhas relativamente mais afastado das restantes, determinando ao longo dos tempos uma clara circunscrição interna do seu relacionamento e convivência, por comparação ao relacionamento com o todo nacional.
Tal circunscrição protegeu e perpetuou os contornos duma identidade perceptível, fazendo com que desde cedo, entre estas três ilhas se forjasse a partilha dum processo evolutivo comum, consubstanciado numa forte inter-influência histórica expressa no intenso inter-relacionamento familiar, comercial, social, cultural e humano.
É sempre cada vez mais surpreendente verificar-se como quase todo o sãovicentino tem uma ascendência de Santo Antão e outra de S.Nicolau
“ […] Aconteceu pelo menos uma migração tão forte das gentes de Santo Antão para S.Vicente a partir da instalação das companhias carvoeiras que, graças a eles e à sua profunda ligação à agricultura, hoje até se pode dizer que S.Vicente é quase auto-suficiente em matéria de produtos hortícolas.” (GERMANO ALMEIDA)
Para além da auto-suficiência em produtos hortícolas produzidos na sua maioria por agricultores de Santo Antão que residem e praticam a sua actividade em S. Vicente, ainda na esfera económica é expressivo o elevado número de casas comerciais existentes na ilha do Porto Grande, pertencentes a proprietários santantonenses. E ainda com maior relevo e de entre as mais tradicionais e antigas, a saniculaenses, resultando tudo isso, na experiência duma trajectória de esforços de sobrevivência conjunta.
Do mesmo modo, uma vivência partilhada das principais manifestações culturais, tais como o Carnaval de São Nicolau e o de S. Vicente ou o Sanjom de Santo Antão e os de S. Vicente e S. Nicolau, é testemunho vivo dessa partilha comum de modos de vida e de estados de alma.
Deste caldeamento material e imaterial, real e espontâneo, fruto de factores naturais como o isolamento secular do espaço onde o mesmo se cozeu e da existência nele dum porto natural de grande envergadura aberto ao mundo, nasce como consequência óbvia, uma espécie de cumplicidade psico-cultural na génese e evolução da figura do “noroestino” cabo-verdiano, que culmina dando forma e conteúdo ao espaço formado por estas três ilhas a que se pode hoje identificar como, o Noroeste cabo-verdeano.
“ […] e é por isso que S. Vicente é não apenas tributária, é filha legítima de Santo Antão. E Santo Antão orgulha-se dessa descendente que soube abrir-se ao mundo sem nunca no entanto ter perdido a sua ligação umbilical. É verdade que não existe em Cabo Verde duas ilhas tão próximas, física e psicologicamente, como Santo Antão e S. Vicente.” (GERMANO ALMEIDA)
Uma ligação umbilical que surge reforçada e estendida à ilha de S. Nicolau, como se vê retratada nalgumas populares e tradicionais canções carnavalescas:
“ Mascrinha quem bô ê? Nha nome ê S.Vicente
Mascrinha quem quê bô pai? Nha pai ê S. Nicolau Mascrinha quem quê bô manhe? Nha manhe ê Sintanton”
Ou nesta:
“Gente de R’Bera Bote ê de Sintanton há, há, há, há!
“Gente de R’Bera Bote ê de Saniclau há, há, há, há!
“Má tambê gente de R’Bera Bote ê de S. Vicente!
Entretanto, esta realidade muito concreta que poderia ser efectivamente reconhecida e eficientemente explorada enquanto substrato natural incontornável para o desenvolvimento do Noroeste e do país, aparece agora adormecida no subconsciente dos noroestinos.
Dormência que indicia a degradação duma base crítica e lúcida, que se assumisse como força motriz duma engrenagem social capaz de desafiar o espaço noroestino, para que, consciente e consequentemente, se afirmasse como, para além duma comunidade de acontecimentos, também uma comunidade de objectivos.
Um facto pouco tido em conta e por isso mesmo revelador dessa, chamê-mo-lhe, dormência, é que, apesar da permanente inter-influência existente entre os sucessivos momentos da história que marcam essa peculiar relação entre as ilhas do Noroeste Cabo-Verdiano, pela observação atenta nota-se que nunca sequer se procura aperceber até que ponto essa realidade vem sendo abordada com alguma displicência quando não, decomposta por artificialismos exógenos.
Um ambiente que impede encontrar as correctas respostas a importantes desafios que, por determinantes conjunturais da modernidade tais como a nova situação de país independente, implicam com mais acuidade, uma correcção dos seus pesos nas preocupações dos cabo-verdianos.
Porque, aos desafios de sobrevivência já aqui relatados e que têm constituído historicamente a verdadeira alavanca das relações desenvolvidas nesse espaço, juntam-se outros que os novos tempos vêm progressivamente colocando à região, e que na verdade são muito mais do que desafios de sobrevivência, configurando-se como desafios que exigem uma visão actualizada aos novos tempos e com novos eixos de pensamento e actuação, por se erigirem claramente como desafios de desenvolvimento. A projecção dum passado num futuro.
Pergunto-me por exemplo se esse passado não significa um importante legado de confiança para o país. Se esse percurso tão personalizado não estará intimamente ligado ao facto dessa região do país ter estado sempre na linha da frente dos grandes saltos da Nação cabo-verdiana, desde o cultural com o movimento claridoso, passando pelas lutas de libertação, da democracia ou da regionalização, provocando os grandes impulsos e rompimentos rumo ao futuro, ao confrontarem permanentemente o status quo, desmembrando dogmas e certezas superiormente instituídos.
Contudo, em contra mão, após a independência somos frequentemente confrontados com visões estratégicas e medidas de governação que, independentemente da sua boa ou má intenção, não consideram um diagnóstico honesto desta especificidade noroestina no contexto Nacional, que suportasse a conveniente identificação duma perspectiva de futuro para a região, a bem do país.
Como exemplo mais gritante, hoje, quarenta e três anos após a independência, estamos perante um retrocesso tal, que, para se deslocar de S. Nicolau para S. Vicente (a ilha mais próxima) ou vice-versa, é necessário dar uma volta a Cabo-Verde.
A este progressivo desmantelamento da espinha dorsal da região que foi o seu percurso e a sua história real, vêm-se associando infelizmente, manobras radicais e explícitas para promover a descrença e a desunião da comunidade noroestina, por iniciativa de analistas, comentaristas e participações com perfis falsos na comunicação on-line.
Convenhamos e custa dizê-lo, uma estratégia de pouca elevação espiritual, de quem não encontra argumentos para se opor a uma realidade construída pela história natural.
Tendo sempre na mira um Cabo-verde de todos e no respeito pela diversidade, pensamos não ser bom presságio para o país, que esta comunidade assim dividida e as outras ilhas continuem a fragilizar-se, tornando-se presas fáceis e terrenos apetecíveis a iniciativas de lavagem cerebral e de desunião, a pretexto de qualquer espécie de domínio.
É por aí que vemos a perversidade e a perigosidade de qualquer tipo de regionalização que não tenha em conta o agrupamento de ilhas.