Por: Armindo Freitas
Este exposto retrata o percurso histórico e o estado da arte do planeamento urbano da cidade de Assomada, abrindo igualmente caminhos para o debate sobre a requalificação urbana. O estado embrionário e débil de planeamento urbano fundamenta as incongruências, incompatibilidades de usos e debilidades na estrutura urbana. E, num vazio de programa, planos e projetos procura-se a requalificação urbana, levando à “morte” da cidade (histórica, cultural, social, ambiental e funcional).
Planeamento Municipal Cabo-verdiano
De 1990 à atualidade foram dados alguns passos significativos no quadro legislativo: a aprovação da LBOTPU (1993), revista em 2006 e alterada em 2010; Lei dos Solos (2007); Regime Jurídico do Cadastro Predial (2008); RNOTPU (2010); Regime de Reabilitação Urbana (2011). Instrumentos legislativos que criaram as bases para o poder público local elaborar algumas figuras de plano tais como Plano Diretor Municipal (PDM), Plano de Desenvolvimento Urbano (PDU), Plano Detalhado (PD) entre outros instrumentos específicos de intervenção urbanística. Porém, até 2007 só foram reconhecidos alguns PD na Cidade da Praia e 3 PDU (São Filipe – Ilha do Fogo; Porto Novo-Santo Antão; e Boa Vista). A partir de 2007, com novo dinamismo da DGOTDU e dos Municípios, deu-se o início de uma nova era de elaboração de Planos: foram elaborados a nível nacional a Diretiva Nacional e a nível regional os Esquemas Regionais de Ordenamento do Território para quase todas as ilhas; a nível municipal uma cobertura quase total pelos PDM e vários PDU e PD em elaboração.
A elaboração desses instrumentos representou um passo gigantesco, levando à acumulação de experiências e a promoção do plano como instrumento orientador das intervenções no território. Entretanto, não houve condições para Execução, Monitorização e Avaliação. Foram elaborados e engavetados.
O exposto confirma o estado embrionário do planeamento territorial nos Municípios cabo-verdianos.
Ora, o planeamento municipal, apoiado no PDM, PDU e PD, ocupa um lugar cimeiro para o ordenamento do território, mas percorrendo a terceira década da lei de base ainda não foi assumido como cultura e prática. E, a sua não assunção é apontada como uma das principais causas das assimetrias de desenvolvimento entre as áreas rurais e urbanas, da marginalização territorial, da concentração exponencial da população nas áreas urbanas em detrimento da erosão demográfica dos espaços rurais, da desorganização e desqualificação do espaço urbano, dos assentamentos em áreas de riscos, da proliferação e consolidação dos assentamentos informais e do défice de infraestruturas e equipamentos coletivos.
O planeamento municipal deverá ser assumido pelos poderes públicos e visto como uma plataforma de mobilização e coordenação das políticas sectoriais, dos interesses e da racionalização e coerência das ações a empreender por diversos atores, com intuito de promover a harmonia do desenvolvimento socioeconómico com o meio ambiente. Cabe-lhe organizar a funcionalidade espacial da economia, enquadrando todas as ações conducentes à transformação do uso do solo, ou seja, promover o ordenamento do território.
Em Santa Catarina, o que aconteceu? E, O que deveria acontecer, a nível do Planeamento?
O município de Santa Catarina, não foge do quadro débil em matéria de planeamento. Só em 2009 deu-se o início da elaboração do PDM, que anos depois, veria a ser aprovado e engavetado. Prevaleceu apenas o Código de Posturas Municipais e alguns documentos avulsos em matéria de controlo urbanístico – “planos de loteamento” que foram concebidos, pela autarquia e pelos particulares à margem da lei de base. Em 2004 foram desenvolvidos o PDU de Achada Falcão e PD de Cruz Grande que até à data não foram ratificados pelo governo central. Entretanto, muitos planos foram executados sem nunca terem sido aprovados oficialmente pela autarquia. O que leva-nos a concluir que o objetivo resumiu-se ao negócio da venda de lotes, sobrepondo-se os interesses particulares aos interesses da coletividade, traduzindo-se mais em especulação imobiliária do que em ato de planeamento. Mas, como dizia ASCHER (2010:171 e 107) “as cidades constroem-se sobre compromissos” e “não é uma soma de interesses particulares”.
Assomada cresceu e continua a crescer à margem planeamento urbano, sem uma visão consequente, de compromisso e pública do conjunto. O plano nunca foi visto como um instrumento de materialização/intervenção/execução no território. Prova disso é que a maioria das zonas abrangidas por esses planos possui uma morfologia urbana pouco estruturada, revelando a degradação da paisagem urbana: construções compactas e desordenadas; falta de ruas; estrangulamento e desalinhamento de ruas; falta de ligação da malha urbana; carências de espaços públicos.
Nunca houve tradição urbanística. O processo contínuo de planeamento nunca teve expressão e nem foi encarado como prática. A ineficácia do planeamento como instrumento, bem como a ausência do poder local no controle da ocupação, uso e transformação do solo rural são realidades que não podem ser refutadas. A Câmara não esteve preparada para conduzir processo, revelando desorganização do sistema de planeamento, do processo de decisão, dos instrumentos de controlo e marcada pela falta de recursos técnicos e financeiros. Por isso, Assomada cresceu acumulando graves patologias urbanas, que comprometem seriamente a qualidade de vida da sua população e a sua competitividade. Aliás, a administração não teve como prática a formulação antecipada de políticas e estratégias de intervenção, acabando as decisões casuísticas e avulsas por trazer grandes custos e implicações negativas em vários domínios.
O exposto justifica paraplegia (uma cidade sem base para movimento, sem pernas para andar) em matéria de planeamento urbano.
Do não Planeamento urbano à “requalificação urbana”
A morte súbita é justificada, pelo forcing do governo e da câmara municipal em “requalificar” a cidade, num vazio de programa/master plan para o efeito. Num contexto, em que se quer fazer tudo sem a devida preparação, levando à degradação dos aspetos arquitetónicos, históricos e culturais, tirando vida, de noite para o dia, ao centro histórico da cidade.
Assiste-se hoje a uma falácia dos decisores públicos em matéria da requalificação urbana, uma vez que o significado do termo não é sinónimo daquilo que acontece nas cidades cabo-verdianas. A requalificação é um conceito amplo e integrador, que tem a ver com um conjunto de decisões, ações e intervenções que visem a melhoria da qualidade de vida urbana. É entendido pelo Decreto-Lei nº 2/2011 como resultado da reabilitação urbana, ou seja, como um conjunto de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização coletiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios. O conceito assenta em princípios basilares como: Garantia da proteção e promoção da valorização do património cultural; Afirmação dos valores patrimoniais, materiais e simbólicos como fatores de identidade, diferenciação e competitividade urbana; Modernização das infraestruturas urbanas; Promoção da sustentabilidade ambiental, cultural, social e económica dos espaços urbanos. O conceito não pode ser confundido com desenhos avulsos e coloridos, com obras de fachadas, com simples asfaltagens de ruas nem como soma de metros de pavet. Requalificar, em suma, consiste na melhoria de qualidade de vida urbana e garantia de sustentabilidade económica, social, histórica, cultural e ambiental.
A propósito, a chamada requalificação urbana de Assomada não ancorou num programa ou plano chapéu, que integrasse toda cidade, nos seus múltiplos domínios. Surgiu apenas à luz de projetos avulsos e, portanto, sem uma visão de conjunto, a saber: desenhos da praça central, da avenida e asfaltagem, da rua pedonal e do mercado central, com implicações negativas na história, na cultura, no ambiente, na mobilidade e na funcionalidade urbana.
Se não vejamos:
A praça central foi objeto de obras (com pavet) sem levar-se em conta a arquitetura e o material (piso cimento) típico da época colonial, com grande simbolismo histórico e cultural, tirando história à praça.
No tocante à rua pedonal e reorganização do comércio nos dois mercados da cidade, algumas interpelações parecem pertinentes: será que a rua foi bem localizada e dimensionada? Será que foi sensata a decisão de transferência de todo o comércio para o mercado novo? E, a nossa resposta para tais inquietações é negativa (não). Primeiro porque escolheu-se para pedonal a maior, a principal rua da malha urbana e a mais importante para a mobilidade e circulação na cidade, tornando intransitáveis não só esta mas também todas as perpendiculares a esta. Segundo, porque a rua pedonal está paralela à rua da igreja e do polidesportivo que está quase todas as semanas ocupada e intransitável com cerimónias religiosas, desportivas e/ou culturais, constituindo um embaraço ou bloqueio na circulação rodoviária. Terceiro porque, com a transferência de todo comércio para o dito “mercado novo”, atrelando lojas e outros serviços e, consequentemente o fluxo de pessoas e toda dinâmica para avenida, a rua à volta do “mercado central” fica sem comércio, sem gente, sem vida e tragicamente sem história. Aliás, hoje, a rua pedonal parece um deserto ou uma pista de aeronave, em que só nos sobra contar e somar os metros de pavet.
A respeito do projeto avenida e a asfaltagem, este peca gravemente naquilo que sine qua non para a vida – a água. O projeto impermeabiliza a quase 100% as áreas afetadas do planalto que é considerado a principal recarga de aquífero, que alimenta os furos do planalto e as nascentes das zonas a jusante. E, não equacionou sequer a rede de drenagem e todo o sistema de aproveitamento de águas superficiais, não obstante tanta falta de água.
Por tanto dito, se nos perguntassem se somos contra a requalificação urbana a nossa resposta seria negativa (não) e, se nos perguntassem se requalificaríamos a cidade de Assomada a nossa resposta seria positiva (sim), pois é uma necessidade premente. Mas, seria com perspicácia, rigor e pragmatismo, enquadrado num programa ou plano chapéu, traduzido em vários projectos para a sua materialização, que integrasse toda cidade (centro histórico e área urbana recente). Mas, também que levaria em consideração as dimensões histórias, culturais, socias, ambientais e funcionais, garantindo vida e sustentabilidade. Pois, temos dito que é preciso “pensar” a cidade, sobretudo, enquanto espaço de história, sentimentos e da vivência humana.
Não nos coadjuvamos à dita requalificação, em que as atividades económicas são desorganizadas (comércio, restauração e outros serviços urbanos), a económica local é objeto de degradação crescente, a circulação e o trânsito são uma desordem total, o património histórico e cultural é destruído e a componente ambiental não é equacionada.
Não para concluir, mas talvez para abrir debate, convém recordar que a cidade é um livro aberto, que conta a sua história. E Assomada, nestes moldes de requalificação, na sua ressuscitação pouco ou nada da época colonial e clássica contará à sua gente querida. Talvez, contará da dor, do sofrimento e das queimaduras do asfalto negro e do sabão à pavet utilizados para lavar a sua simbólica e nobre cara.