Germano Almeida*
Nem toda a gente sabe a importância que teve para os cabo-verdianos a descoberta do Brasil. E não foi pelo samba ou pelas folias do Carnaval trazidas a nós pelos marinheiros que passavam pelo Porto Grande onde deixaram a sua arte de tocar violão, o hábito da cachaça e alguns descendentes. Nem foi também pelas duas tentativas que fizemos ao longo da história de nos juntarmos a ele, a primeira aquando da sua independência, altura em que nos oferecemos para ser uma das suas províncias, a segunda anos mais tarde, quando, para fugirmos à fome, inventámos a ideia de uma confederação Angola-Brasil-Cabo Verde-Moçambique. Não é por nada disso, não senhor. Devemos homenagem ao Brasil porque foi de lá que recebemos o milho, o pequeno grãozinho que ainda nos vem garantindo a sobrevivência nestas ilhas.
De modo que, numa altura em que em Portugal se terçam palavras no esforço algo patético de se decidir se um museu deve ser chamado dos Descobrimentos ou então das Descobertas, ocorre-me celebrar o descobrimento ou a descoberta ou a invenção da cachupa nossa quotidiana, como disse certa vez o Dr. Baltazar. Hoje até já podemos dizer que a cachupa é um cozido à portuguesa onde se meteu milho, porém, nem sempre foi assim. Primeiro porque chegar à cachupa deu-nos trabalho, não foi chegar, meter na panela milho, feijão, carne de porco, toucinho e chouriço e algumas verduras, encharcar em água e levar ao lume e já está. Não foi assim, não senhor! Até pela razão simples de que sequer tínhamos milho, o milho chegou a Cabo Verde como uma oferta do Brasil. Melhor, uma troca: mandámos para lá o coqueiro e eles, agradecidos, retribuíram com o milho!
Bem, o coqueiro também não era nacionalissimamente nosso, no sentido de nascido e criado em terras cabo-verdianas, isto é, não foi um cidadão originário. Porém, chegou e adaptou-se tão bem entre nós que a gente vê e pensa que é daqui, profundamente nacional, o caldo de peixe com óleo de coco, ou então a cachupa com leite de coco, isso para já não falar do xerém com cabrito guisado em panela de ferro, ou dos diversos e deliciosos doces de coco, aranha, sucrinha em losangos… Pois, achamos que só existem aqui, cabo-verdianos de origem e nacionalidade, e afinal descobre-se que o coqueiro veio da longínqua Índia. Aliás, tal como a batata-doce, ou a nossa suculenta manguinha-de-terra, por sinal de muito longe superior em aroma e sabor a todas essas espécies novas que a alienação das importações está agora a impingir-nos, todas elas vieram da terra dos marajás, trazidas sabe Deus por que aventureiros ou cativos abandonados nestas paragens…
Temos culturas muito importantes obtidas graças à generosidade brasileira, incluindo o feijão, a mandioca, a papaia e o ananás. Porém, em termos de hegemonia nacional, nenhuma delas se compara ao milho, ao humilde e glorioso milho da nossa cachupa, das nossas papas, cuscuz, pão de milho, funguim. E isso sem se chegar à sua suprema e mais barata forma que é o milho aliado que alegra o bife de caneca que continua matando a fome de muita da nossa gente mais pobre. Mas assim celebrando a cachupa não devemos esquecer Pedro Álvares Cabral, afinal o homem que os acasos das fortunas do mar e dos ventos conduziram às terras do milho. Ainda hoje ele é homenageado em São Nicolau através de um padrão guardado por oito lânguidas e já ferrugentas bocas-de-fogo estendidas na poeira vermelha, com a inscrição de que no ano de 1500, dia 22 de março, a sua armada passou ao largo dessa ilha na rota que o levou às terras de Vera Cruz.
*Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões’2018
FONTE: Diário de Notícias (Portugal)