Por: José Pedro Oliveira
Seja qual for a definição de Estado – porque há muitas – que se escolher, o cidadão de qualquer canto do mundo tem conceitos comuns quanto à sua própria ligação com o estado a que pertence, tal como o DEVER de garantir e assegurar o pleno exercício dos direitos e liberdades fundamentais a todos os cidadãos entre tantas outras tarefas que justificam a existência desse estado. Esse mesmo cidadão de qualquer latitude deste planeta é convencido automaticamente que a existência do seu estado pressupõe uma certa protecção colectiva decorrente da ordem implementada internacionalmente e à qual os estados (quase a totalidade) se comprometem respeitar e fazer cumprir no interior dos seus respectivos territórios.
Assim, não passaria pela cabeça de ninguém, muito menos de alguns que deram seu contributo para a criação do Estado de Cabo Verde, que 6 anos depois de sua proclamação fosse nesse mesmo Estado, ou em nome dele, que cidadãos pacatos, idóneos e trabalhadores com provas dadas e reconhecidas na sua ilha e localidades, viessem a ser vítimas da agressão física e psicológica perpetrada pelo próprio Estado numa operação tão estúpida quanto brutal de esvaziamento da dignidade humana desses cidadãos e seus familiares. E de toda a ilha, diga-se!
Se houve sofrimento? Muito! Muito mesmo! E o pior de tudo é que esse sofrimento foi aumentando com o tempo na mesma proporção à da IRRESPONSABILIDADE do Estado.
O Estado de Cabo Verde tem nesta altura 43 anos, o assunto que vou colocar nesta crónica tem 37 e a Democracia no nosso país já leva 27 com 10 anos de governação MpD + 15 do PAICV + 2 do MpD. Ao Estado de Cabo Verde de então, 1981, com 6 anos de existência, e na turbulência da conjuntura pode-se até anuir uma infantilidade normal em todas as crianças, mas ao Estado Democrático que já leva 27 anos e ainda nenhum dos seus executivos deu mostras de vontade ou coragem política para resolver os pendentes sociais deixados pela incongruência de um Estado recém instalado e ainda por cima de governo monolítico, dizia, já não se pode oferecer a mesma complacência.
Uma coisa era o MpD, através de certos dirigentes, recorrer-se de forma ligeira aos factos do 31 de Agosto todas as vezes que necessitasse mexer com o sentimento dos eleitores que de uma forma ou de outra tinham sido, por eles, marcados. Aliás, a população de toda a ilha ficou profundamente marcada ao ponto de, nas primeiras eleições livres em Cabo Verde e em que Santo Antão metia 10 deputados no parlamento, o resultado ter sido 10 para o MpD e 0 para o PAICV. Isto disse quase tudo, na altura, pena que por se tratar de Santo Antão as autoridades nacionais fizeram orelhas moucas.
Uma coisa é o PAICV armar-se em herdeiro da história de Cabo Verde nas situações que lhe dá jeito, também com fins eleitoralistas, e pretender apagar parte significativa dessa mesma história quando não convém como é o caso dos Factos que aconteceram em Boca de Figueiral da Ribeira Grande, naquela Segunda–feira, 31 de Agosto de 1981, por volta das 10:00 horas, e todo e o resto que se lhes seguiu e que não cabe aqui.
Mas outra coisa, totalmente diferente e que deve se distanciar de qualquer uma das posições tristemente oportunistas dos dois partidos que vêm se alternando no cadeirão do poder em Cabo Verde, é a Assumpção da Responsabilidade do Estado e a seriedade e hombridade em responder integralmente por ele (Estado), seja quando a situação é favorável, seja quando não é.
É ISSO QUE O CIDADÃO ESPERA DO SEU ESTADO, A QUEM PRETENDE CONTINUAR A RESPEITAR COMO PESSOA DE BEM!
O 31 de Agosto não pode continuar a ter várias leituras, de acordo com os interesses de quem governa ou de quem pretende governar. Não pode continuar a ser arma de arremesso para os partidos políticos que àquela data, por sinal, um (PAICV) tinha 7 meses de existência e outro (MpD) nem sequer existia.
O 31 de Agosto, quer queiramos ou não, é parte da nossa história no pós-independência e a melhor forma de fechar de uma vez por todas esse dossier de modo a que não fique ao léu e ao dispor da pouca seriedade de alguns, é o ESTADO de todos nós assumir a RESPONSABILIDADE do que aconteceu em seu nome. O Estado de Cabo Verde proclamado a 5 de Julho de 1975, no maior feito da história do povo destas ilhas, continua e continuará sendo o mesmo Estado. Os governos é que mudam!
Um Estado sério tem que assumir suas responsabilidades, liquidar suas dívidas perante os cidadãos contribuindo assim para a paz social e a felicidade do povo. Assim foi a proclamação de 5 de Julho – nosso ORGULHO! Os governos, seja ele qual for, têm a obrigação, porque para isso foram eleitos, de administrar a coisa pública no sentido de engrandecer cada vez mais esse Estado que é o maior património dos cabo-verdianos.
Pois, o Estado de Cabo Verde tem que fazer tudo para minimizar sua dívida perante todos os presos do 31 de Agosto, ou seus descendentes, sobretudo as duas viúvas Francisca e Fernanda e os órfãos Manuel e Adriano da primeira, e Jair e Jailton da segunda.
Poderia deixar aqui “N” exemplos de pessoas que nunca mais, até hoje, se encontraram com sua vida em paz, após o episódio que, infelizmente, alguns pretendem passar uma borracha e no qual o Estado e os historiadores não podem ficar a ver para o lado.
É um desígnio a arrumação definitiva e de forma tranquila, deste problema que, como noutras paragens, poderia ter originado uma ferida social de resultados imprevisíveis. Em Cabo Verde, queremos é paz social e devemos lutar por ela. Quem melhor que os altos representantes do Estado para dar o exemplo? Esses, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Chefe do Governo, os líderes dos partidos políticos, os líderes das bancadas parlamentares, não podem continuar a fazer tábua rasa sobre uma matéria de tal dimensão e importância para repor a justiça onde os ofendidos são cidadãos e o agressor o próprio Estado.
E também, seria de elevada grandeza, e a História da Nação cabo-verdiana o registaria de certeza com brilho, se aparecesse neste momento algum antigo governante aconselhando os actuais a assumir essa responsabilidade que não é de ninguém em particular, mas de todos através do Estado.
Deve ficar bem claro que ninguém reclama por vingança porque as responsabilidades ali nunca poderiam ser atribuídas ao governante A, B ou C e, muito menos ao executante D, E ou F, pois tudo aquilo foi consequência de uma filosofia conjuntural anti-natura cujo colapso a nível mundial veio dar razão aos que sofreram em prol da liberdade individual para que tivéssemos as condições actuais de viver em paz. Há muito que os cabo-verdianos entenderam isso e que qualquer um de nós poderia lá estar e ter feito igual, pior ou melhor. Não é isso que interessa! Há uma parte da justiça que só Deus poderá resolver e, com certeza a ele estará entregue sobretudo pelas duas viúvas e pelos 4 órfãos. Aos homens, cabe a sua parte e, salvo opinião contrária, é aquela para a qual chamamos à atenção do Estado.
O verdadeiramente importante a registar é que tudo que foi feito e que deu cabo da vida de muitos cidadãos exemplares deste país (ilha sofredora de Santo Antão), foi em nome do ESTADO DE CABO VERDE. E é esse mesmo Estado que tem a obrigação de tentar repor a Dignidade Roubada àqueles cidadãos num gesto de grandeza para que fique o exemplo da pretensão de se criar e aprofundar uma sociedade de Paz e de Tolerância. Esta, talvez, seja a mais iluminada obrigação de um Estado que se quer sério e bem-intencionado.
Não podemos continuar a confundir a Nação, principalmente os mais jovens, sobre uma matéria que diz respeito a todos e que deve ser clarificada e assumida a bem de todos. Temos a obrigação de dizer aos mais jovens que os acontecimentos em Cabo Verde, ainda criança enquanto Estado, e por isso maiores razões para tolerância, eram consequências directas do golpe de Bissau, 14.11.1980, que pôs o PAI de CV em alvoroço com o pavor de perder o poder. Para quem, se não havia Liberdade para uma alternativa interna e a Queda do Muro de Berlim estava ainda a 8 anos de chegar? Mas dizer-lhes, aos jovens e a todos, que houve vítimas sim, um jovem de 31 anos de idade, Adriano Santos, que caiu baleado na localidade de Boca de Figueiral por agentes do Estado de Cabo Verde armados até aos dentes com metralhadoras AK47 disparando sobre a população indefesa, e ao serviço desse nosso Estado, deixando a jovem viúva Francisca Fortes dos Santos de 24 anos e os dois órfãos Manuel Adriano dos Santos de 2 anos e Adriano Nascimento dos Santos de 1 mês e 21 dias. O jovem de 33 anos, Osvaldo Rocha, vítima de torturas na prisão do Estado de Cabo Verde, e que deixou viúva a jovem Fernanda Miranda de 21 anos e os dois órfãos Jair de 4 e o Jailton de 2 anos. FACTOS são FACTOS! Querem mais nomes?
Por ordem alfabética, fica aqui a lista dos que foram presos sem culpa formada, enclausurados, espancados, torturados e, muito pior, HUMILHADOS como não se faz nem aos piores terroristas deste mundo: Albino Ferreira Fortes, Adriano Duarte, Aníbal Teresa Delgado, António Gomes, António José Monteiro, António Pedro Delgado, Arnaldo Gomes Miranda, Boaventura João Miranda, Cândido João Oliveira, Carolino Fortes, Epifânio Lopes Ferreira, Francisco Borges Gomes, João Antonina Pires Oliveira, João António Monteiro, João Gabriel Sousa dos Reis, João Pedro Pires, José Elizeu Soares, Manuel Jesus Silva, Manuel Lopes Ferreira, Manuel Pedro Fernandes, Maximiano Antão Dias, Maximiliano Delgado e Osvaldo de Oliveira Rocha
Para além do Osvaldo Rocha, atrás referido, já faleceram 10 de morte natural mas a maioria dos agredidos e ofendidos brutalmente pelo Estado de Cabo Verde ainda estão vivos e, graças a Deus, bem lúcidos. Mas como ninguém deve ser testemunha em causa própria, eu sugiro às autoridades do Estado de Cabo Verde que façam o seu trabalho, inquirindo instituições credíveis e populares idóneos e isentos que presenciaram os acontecimentos desse negro dia e dos meses e anos que se lhe seguiram.
Atenção, que não se está a pedir a ninguém que faça “Mea Culpa”, apenas ao Estado, através de seus representantes, que cumpra parte significativa do Pacto que assumiu com o Povo que lhe deu origem. Mas como?
Na minha humilde opinião, enquanto cidadão deste país e filho da ilha humilhada, e directamente interessado num clima de tranquilidade social e de paz total para as gerações jovens e vindouras, proporia o seguinte caminho:
1
– Criação de uma Comissão parlamentar de 5 elementos (2 do MpD, 2 do PAICV e 1 da UCID e, de preferência, nenhum natural da ilha de Santo Antão) para fazer um levantamento exaustivo e o mais sério e isento possível dos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981, junto das populações e das instituições administrativas, judiciais e militares.
2
– Apresentação dos resultados da investigação, discussão (sem histerias partidárias, claro) e aprovação de um diploma no Parlamento, onde pudesse ficar definido, entre demais pontos, os seguintes:
-Reconhecimento da Responsabilidade do Estado sobre tudo o que aconteceu;
-Disponibilidade do Estado em, com urgência razoável, reparar os danos causados aos ofendidos, até onde for possível;
-Declarar 31 de Agosto como feriado nacional;
-Mandar erigir um monumento na localidade de Boca de Figueiral, onde caiu o jovem Adriano Santos, em que a palavra LIBERDADE possa ser exaltada.
-Aconselhar e recomendar os partidos políticos que fica vedado a utilização dos feitos do povo cabo-verdiano, e suas datas mais sonantes como 5 de Julho, 13 de Janeiro e 31 de Agosto, em jornadas ou campanhas de despique político.
Como humanos que somos, todos erramos, mas o grave é quando temos possibilidades e não reparamos esses erros. O Estado de Cabo Verde, através dos eleitos do mesmo povo a quem agrediu, tem uma ferramenta especial que é a Constituição da República de Cabo Verde por intermédio da qual poderá e deverá cumprir uma das mais nobres tarefas de um Estado: Garantir os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, promovendo a paz social.
E é por isso que a presente mensagem é dirigida a uma única pessoa: ESTADO DE CABO VERDE. E aproveito para, penhoradamente, pedir a todos que não conhecem e nem fazem a mínima ideia do que realmente aconteceu, que se mantenham tranquilos sem se envolver em discussões estéreis, aguardando os resultados de um trabalho sério e no qual devemos acreditar para mostrar a nós mesmos que somos um país de gente responsável. E, pedir a colaboração isenta e sincera de todas as pessoas singulares, instituições locais e nacionais, partidos políticos, associações, órgãos de soberania, e, todo aquele que for chamado a colaborar para se solucionar e ultrapassar, DE VEZ, essa nódoa negra da nossa história recente. É nódoa, mas é nossa, e só nós teremos a obrigação e a capacidade de removê-la do nosso dia-a-dia, de forma digna, e colocá-la nas prateleiras da nossa história para que sirva de exemplo de como este povo não tem pejo em reconhecer e corrigir os erros do Estado que ergueu e que está determinado em caminhar rumo ao desenvolvimento.
E, aos ofendidos e humilhados, para que tenham o dom de perdoar, deixo uma frase de Nelson Mandela – uma das maiores figuras que a Humanidade nos deu a conhecer: “Quando penso no passado, no tipo de coisas que me fizeram, sinto-me furioso, mas, mais uma vez, isso é apenas um sentimento. O cérebro sempre domina e diz-me: tens um tempo limitado de estada na Terra e deves tentar usar esse período para transformar o teu país naquilo que desejas”.