Hélder Araújo
Pela relevância e atualidade do assunto, julgo oportuno tratar mais de espaço alguns apontamentos que algures fiz sobre a regionalização.
Dou por adquirida a constatação de que o país se vem desenvolvendo de forma muito desigual nesses quarenta anos de independência, havendo parcelas do território que pouco avançam, ao lado de outras com assinalável dinâmica económica e social.
Também dou por adquirido que esse desenvolvimento desigual não se funda numa mera desigualdade de potencialidades, mas sobretudo numa excessiva centralização de poderes e intervenções, ainda que de algum modo motivada pela nossa condição de arquipélago.
Fixados esses pressupostos, impõe-se reformar o Estado, sob pena de legarmos um futuro nada fácil àqueles que hão de cá estar, daqui por mais vinte ou trinta anos.
Sem propósitos igualitaristas, a regionalização surge assim como medida necessária ao desenvolvimento de todo o país, um patamar intermédio de poder capaz de combater assimetrias e promover equilíbrios que fomentem a cidadania, o orgulho e a coesão nacionais.
Uma regionalização com tais virtudes, exige, a meu ver, a observância de três princípios cardeais, a saber:
1) Conceção de um modelo que se insira, com ciência e com coerência, no quadro de uma política global de organização, planeamento e desenvolvimento do território e do país.
2) Garantia do equilíbrio possível entre os poderes reais das diferentes regiões, de modo a que estas possam, de facto, funcionar como fatores de desenvolvimento interno e contenção das assimetrias regionais.
3) Adoção de um modo de organização e funcionamento dos órgãos regionais que impeça o desenvolvimento de políticas centralizadoras, dentro de cada região.
À luz desses três princípios, a proposta de uma região por cada ilha, padece de evidentes deficiências, como a seguir procuro discriminar.
Se para algumas ilhas, tal proposta contempla regiões com diferentes municípios, para outras, ela contempla regiões com um único município, aquilo que poderíamos chamar de “região/município”.
Todavia, território, população e poder, não são realidades que independem umas das outras, realidades que desagregamos e manejamos de forma arbitrária.
Muito pelo contrário, a existência de poder estadual, poderes regionais, poderes municipais e poderes inframunicipais, implica que o território estadual se subdivida em duas ou mais regiões, cada região em dois ou mais municípios, cada município em duas ou mais freguesias, e assim sucessivamente.
A diferentes patamares de poder, devem corresponder, lógica e funcionalmente, diferentes patamares de território e população.
Conceber uma região que se circunscreve a um único território municipal, é meter areia na engrenagem, é conceber aquilo que, na ausência de melhor designação, chamaria de “falsa região”.
“Falsa região”, por falta de identidade própria no que se refere a território e população, mas também porque, se território e população permanecem necessariamente os mesmos, é mais cabido aumentar-se o poder municipal.
No meio dessa indefinição, a “falsa região” conduz a uma duplicidade de estruturas que, exclusiva e integralmente debruçadas sobre o mesmo território, conviverão paredes meias com o despesismo e a ineficácia.
No plano nacional, as falsas e as verdadeiras regiões acabam por configurar uma descabida coexistência entre territórios ficticiamente regionalizados e territórios autenticamente regionalizados.
Como se vê, a solução “região/ilha” coloca em causa aquele primeiro princípio, o de conceber um modelo que se insira, com ciência e com coerência, no quadro de uma política global de organização, planeamento e desenvolvimento do território e do país.
Mas essa solução apresenta outro tipo de insuficiência.
Não se trata agora da “falsa região”, mas dos poderes reais que efetivamente emanam de cada região.
Com efeito, não se pode pretender criar equilíbrios regionais através da criação de regiões manifestamente desequilibradas entre si.
Ora, em abstrato, a proposta “região/ilha” poderia desembocar no absurdo de uma região para a ilha de Santa Luzia.
Em concreto, essa proposta implica a existência de uma região para ilhas que, como o Maio ou a Brava, muito dificilmente serão detentoras de poderes regionais capazes de ombrear com os poderes de outras regiões.
No fundo, não deixa de ser intrigante a conjugação do propósito de se dar alento a parcelas marginalizadas do território, com medidas que, afinal, nada mais fazem do que acentuar as suas dificuldades de afirmação no panorama nacional.
Fica assim patente que a proposta “região/ilha”, também não dá cumprimento àquele segundo princípio, o da garantia do equilíbrio possível entre os poderes reais das diferentes regiões, de modo a que estas possam, de facto, funcionar como fatores de desenvolvimento interno e contenção das assimetrias regionais.
Creio pois não valer a pena insistir num modelo com tamanhas contradições, em detrimento de um outro que, além de conferir o devido peso às regiões, diferenciando-as claramente dos municípios, aposta no aproveitamento de reforçadas afinidades históricas e culturais entre grupos de ilhas, reforçadas complementaridades que são naturalmente construtoras do seu desenvolvimento.
Chegados a este ponto, é também legítimo indagar sobre a compatibilidade da solução “três regiões” com o terceiro princípio antes enunciado, o da adoção de um modo de organização e funcionamento dos órgãos regionais que impeça o desenvolvimento de políticas centralizadoras, dentro de cada região.
Por mim, creio ser esta uma indagação que logo se resolve face às inúmeras possibilidades de se conformar um poder regional verdadeiramente inovador e diferente do poder central.
A título meramente exemplificativo, tal como aliás consta de opinião já publicada, a simples existência de governos regionais compostos por governadores eleitos em cada ilha, necessariamente em número igual, seria de per si uma forte machada sobre qualquer pretensão de centralismo.
Mais, as ilhas de cada região podem acolher número igual de governadores, podem eleger, de três em três mandatos, o presidente do governo regional, acolher a presidência desse mesmo governo, também de três em três mandatos, ou, em alternativa, por período igual dentro de cada mandato.
Importante, é estudar as diversas hipóteses e escolher a solução que melhor convém.
Finalmente, tanto como sopesar os custos da regionalização, é urgente sopesar os seus benefícios, assim como os prejuízos presentes e futuros que a atual situação comporta.
Todavia, cingindo-me exclusivamente aos custos, releva enfatizar que a solução “três regiões”, sendo muito mais enxuta, é também muito menos custosa que a solução “região/ilha”.
Outrossim, ainda que paulatinamente, tais custos haverão de ter o seu devido impacto na redução das estruturas e dos encargos da administração central.
Digamos que, se feita com cabeça, tronco e membros, e vontade, a regionalização não parece implicar custos fora do nosso alcance, custos que não tenhamos enfrentado noutras ocasiões.
Aliás, vem a talhe de foice relembrar que uma organização mais cuidada do território nacional, mais cuidada em matéria de custos, concita-nos a uma reflexão muito séria sobre a multiplicidade de municípios que criamos após a independência.