Filinto Elísio
14. QUI | Playlist & não vou por aí
Não me concedo aos “dezes” | e rimo-nos serem mais de dez os mandamentos | Nem me fio aos dez autores lidos e aos dez músicos ouvidos | já cá não canta a tal playlist | quando a Classificação Decimal Universal é múltipla de 10 | e o decálogo não me afiança divino | E miríade o labirinto de Dédalo | onde se perde mil vezes nas inumeráveis vidas que temos | Não me proponhas as dez coisas que abraço | nem queiras saber o que penso do zero como décimo numeral | Em mim José Régio insiste: Sei que não vou por aí! | Concedo-me antes em ver a cidade | no seu numerário infinito | qual Shiva de muitos braços | ou a poética do moto-perpétuo
Eis que vão
contrários aos ponteiros do relógio
os meus poemas
*
Verbos de regência
em pedra
mas que esboroam
e adubam
a sementeira do corpo
*
E dão horas de chuva
os advérbios sem modo
15. SEX | Cesta básica matinal
Desobrigo-me a ser outra coisa | que não esta contemplação aqui e agora | Amanhece no relógio | e o tempo nevoento que se amanha | já é quase outonal | Enleio-me dele ao horizonte mais espesso | como descortino mais diáfano o dia mais à frente | Pressinto no gato que vem das cercanias | e na giesta da laranjeira a esboçar-se toda ela frutos | que o fugidio destas circunstâncias | quiçá câmbio da estação | seja o intervalo substantivo e a vertigem que me importam | A neblina que se põe a acariciar os telhados da vizinhança | com a misteriosa respiração | e desobrigo-me de tudo | sem a voluptuosa coerência | da trituração destas palavras.
16. SAB | A fome e o “retrovisor” de Schumpeter
Passamos a ler | com alguma minúcia | e elevada indignação | o que nos conta o relatório da ONU sobre a fome e a insegurança alimentar | Para além da situação global | interessa-nos conhecer a situação em cada país | para que se infira quão anacrónica a situação | Interessa-nos saber | não apenas os detalhes sórdidos dos 20% dos esfomeados de África (nosso continente) | como os não bem explicitados quadros na CPLP (comunidade dita lusófona que partilhamos) | para que refaçamos alguma prioridade da agenda comum | Interessa-nos também o recuo histórico de Cabo Verde | inclusive aquele que nos permite reler a poética de Jorge Barbosa | em “Malditos/estes anos de seca” | ou as investigações de António Carreira | sobre as tragédias da fome nas ilhas | cuja primeira prolongou-se de 1580 a 1583 | e outros registos remetem aos séculos XVII | XVIII e XIX | E do século XX | recolocar o foco nas tragédias de 1921-1922 | nas de 1941-1943 e de 1947-1948 | Para que nos olhemos ao espelho | ao “retrovisor” de Schumpeter | Por uma questão de futuro…
16. SAB | Da geopolítica da fome
O relatório da ONU diz que | 520 milhões na Ásia | 243 milhões em África e 42 milhões na América Latina e Caraíbas | estão em situação de fome | elementar violação aos direitos humanos | Em verdade | 11,7% da população asiática passa fome | assim como 20% da africana e 6,6% da América Latina e Caraíbas | É um escândalo global | obsceno e vergonhoso | que perturba o futuro do mundo | e dá nota negativa a esta nossa ordem mundial.
18. SEG | Sem perder a ternura jamais
Falávamos | em verdade teclávamos | de como ele | elegante e poeta | abria alas às musas apressadas no metro de São Paulo | Como entre riso e espanto | olhava para o travesti que caminhava para beijá-lo na peça de teatro | Fora exatamente há oito anos | Em Salvador | Mas dizia | rindo sempre das estórias de Vão Gogo e Umberto Oco | e daquela de Millôr | como a morte é hereditária | E os poemas que dizíamos! | Ah fonte na fronte de tal homem | Como em plena multidão | um despontar de deusa | arrancava-lhe interrogar | Quem não se deixa seduzir pela serpente? | Atire tudo a primeira pedra | Não pela maçã que se amadurece na árvore da tentação | mas o imperioso contragosto do proibido | que toda a parábola aporta | Maravilhava-se nos olhos de Adão | o pecaminoso soltar das cores | com que Eva dançava | E quem não se deixa desse spleen embalar?