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Opinião

Ainda Sobre Os Organismos Geneticamente Modificados (OGM), E … Não Só

Arsénio Fermino de Pina*

Quando as plantas geneticamente modificadas foram desenvolvidas e comercializadas, nos anos oitenta do século passado, havia razões para se ser cauteloso e crítico, o que chegámos a ser em artigos apoiando as suspeitas das ONG ambientais como a Greenpeace, isso por as grandes multinacionais agro-alimentares terem poder e lucros fabulosos na difusão de sementes dessas plantas sob patente, resistentes a pragas e à seca, tendo elas introduzido nas mesmas genes que impedem a germinação das sementes produzidas pelas plantas cultivadas. Outrossim, não havia garantia de inocuidade dessas novas plantas e de seus frutos à saúde, havendo mesmo o risco delas transmitirem resistência a plantas parasitárias.

As plantas geneticamente modificadas obtêm-se introduzindo genes especiais no genoma de certas plantas, genes esses que lhes conferem outras qualidades como resistência a pragas e à seca, consequentemente, maior produção. Até agora ainda não se comprovou nenhum efeito nefasto para a saúde, embora se possa admitir que a resistência a pragas e a secas se possa transmitir a ervas daninhas, o que também ainda não foi provado. De resto, em qualquer inovação, os riscos devem ser comparados com possíveis benefícios; se os benefícios forem menores, não se justifica correr riscos, se forem maiores, pode valer a pena correr  riscos.

Os maiores sucessos obtidos com os OGM referem-se a cereais, milho, trigo, arroz, alimentos de base tanto de humanos como de grande número de outros animais. O único óbice para os países subdesenvolvidos pobres é poderem ficar dependentes da compra anual dessas sementes às poderosas multinacionais que as produzem e comercializam. Uma dessas companhias, a Syngenta, produtora de um tipo de arroz, chamado “arroz dourado”, decidiu fornecê-lo a uma organização sem fins lucrativos chamado “Conselho Humanitário do Arroz Dourado”, que beneficia do direito de fornecer o arroz a instituições públicas de investigação e a agricultores com poucos recursos de países em desenvolvimento, desde que não o venda mais caro do que as sementes do arroz correntes. Decisão de impacto social realmente louvável dado que essas multinacionais pouco se importam com o humanitarismo e o social; pelo seu enorme poder económico, condicionam governos, manipulam a informação e controlam a lei e têm lucros fabulosos, o que não é de estranhar, visto não terem ideologia, defendendo interesses pouco legítimos. De lamentar que as multinacionais que desenvolveram esse tipo de sementes do milho e trigo não tenham adoptado a mesma política, porque alguns OGM podem ter um papel útil a desempenhar na saúde pública e na resposta ao desafio de cultivar alimentos numa era de mudança climática. Será que poderemos confiar nessas multinacionais se ou quando dominarem o mercado?

O “arroz dourado” foi desenvolvido com inclusão de um gene indutor de produção de betacaroteno – que se transforma em vitamina A no organismo – que escasseia na alimentação à base de arroz, milho e outros cereais, também da mandioca e banana, como acontece em vários países subdesenvolvidos; a ausência ou diminuição da vitamina A na alimentação leva à cegueira de crianças sujeitas a esse tipo de alimentação. Tenho provas vividas das consequências dessa carência na minha experiência clínica em Cabo Verde no tempo colonial em períodos de fome, na ilha do Fogo, e no início da independência, em S. Vicente, antes do início do Projecto de PMI/PF (financiado pela ONG sueca Radda Barnen) que instituiu a vacinação programada em massa de crianças e a educação das mães no capítulo da alimentação e nutrição infantis, altura em que me debati com uma epidemia de sarampo com reacções oculares aparatosas levando a opacidades da córnea e mesmo à cegueira. Vasculhei a literatura médica a tentar entender a causa da gravidade de tais lesões, por nunca as ter visto nem referido na Europa, até encontrar algo que me orientou: o facto de, nas infecções com febres muito elevadas – sendo o sarampo o protótipo delas –, haver grande consumo da vitamina A. Deduzi que nas crianças malnutridas com sarampo esse excesso de consumo da vitamina A seria gravíssimo, explicando o que víamos nas nossas crianças. A medida tomada de imediato foi injectar a todas as  crianças internadas com sarampo dez a vinte mil unidades de vitamina A, e o resultado foi espectacular: não só deixaram de aparecer lesões oculares  como a evolução da doença passou a ser mais suave,  com diminuição da mortalidade mesmo em crianças com malnutrição grave.

Graças à acção da PMI/PF, já não vemos sarampo, nem tosse convulsa, tétano umbilical ou paralisia infantil; as temidas desidratações em crianças são prevenidas com sais de reidratação oral, atitude iniciada por mim mesmo antes do aparecimento da ORALITE (SRO), com uma mistura de citrato de sódio e glucose usada no Brasil, e as formas graves tratadas correctamente. Desenvolvemos três tipos de alimentos infantis, utilizados na PMI/PF e Enfermaria de Pediatria, uma mistura de cereais e leguminosa enriquecida com ferro e vitamina A – por termos demonstrado num inquérito essas carências em crianças e grávidas -, de uma experiência da INCAP, Guatemala, que apelidei de MICAF (MI de milho, CA – cabecinha, farinha de trigo não refinada, F – feijão congo, por ser o mais rico em proteínas), o “leite de peixe”, inspirado no “Leite de Frango”, do Hospital Pediátrico de Coimbra, no qual substituímos o frango por farinha de peixe ou “peixe em pó”, obtido de carapaus pequenos que secávamos, torrávamos e reduzíamos a pó em pilão,  utilizado com reconhecido sucesso na recuperação da malnutrição grave tipo kwashiorkor; como suplemento alimentar infantil utilizámos farinhas de folhas secas de abóbora e mandioca, que mandámos analisar na Suécia e Portugal, ricas em sais e proteínas (ver ANAIS, volume 1, nº 2, 1999, da AECCOM). A MICAF, proposta para produção e comercialização pela FAMA (fábrica de massas alimentícias, moagem de café e produção de camoca), não se concretizou por não ter aparecido ninguém a lutar com argumentos fortes para a sua implementação, estando eu já na OMS, não obstante ter obtido financiamento do PNUD, que  acreditou no seu interesse para o país. Após o meu regresso da OMS tentei relançar a sua industrialização e comercialização, mas sem sucesso que os tempos eram outros, com pouca sensibilidade para o social, virado que estava o Governo para a privatização e a economia de mercado sem resguardos contra os exploradores e especuladores. Vim a saber que o técnico francês encarregado da sua industrialização na FAMA conseguiu convencer  governos de dois países africanos a realizar o que não fizemos. A minha MICAF existe noutras paragens, porque, como diz o ditado, santos de casa não fazem milagres. Poderia limitar a importação de alimentos infantis e até render dividendos para o país, dado que as Nações Unidas, aquando de catástrofes e fome em África, costumam importar da Holanda e Austrália farinhas do tipo da MICAF. Havendo-as em Cabo  Verde, certamente que era muito mais fácil e económico utilizar a nossa.

Não obstante o  meu costado avermelhado – porque ser de esquerda não depende da idade, e a Medicina comprova-o, dado que mesmo aos oitenta anos de idade, o coração continua à esquerda -, não abomino o liberalismo, a economia de mercado e a liberdade privada, mas  com freios impostos pelo Estado. Os Estados têm de assumir um papel regulador, porque sem isso torna-se iníquo. Por constatação noutras paragens sabemos que a criação de riqueza nasce da iniciativa privada e de empresas e não do Estado ou de projectos colectivos. O  Estado tem de fiscalizar muito mais e de forma mais sistemática aquilo que dá aos outros para gerir com o dinheiro de todos e actuar com  determinação e coragem.

Desculpem a referência às minhas investigações na PMI/PF que pretende somente demonstrar que não é com Estado rígido, centralizado e pouco sensível a iniciativas, invenções e investigação que os problemas do nosso tempo e povo são ultrapassados.

Parede, Dezembro de 2017                                     

* Pediatra e sócio honorário da ADECO

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