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Opinião

Regionalização, um imperativo

Onésimo Silveira

A regionalização de Cabo Verde é um problema que tem a idade da nossa Constituição democrática que lhe concedeu algumas linhas e a abandonou à sua sorte até aos dias de hoje, quando o actual Governo decidiu enfrentar a sua solução com coragem e determinação. Este artigo é uma contribuição, mais uma, pessoal e cidadã, que exprime o nosso sincero desejo de colaborar com todos os agentess políticos na procura de vias as mais adequadas para atingirmos todos os objectivos e elaborar programas de acção com impacto na vida nacional.

Para nós a ausência de regionalização é, a um tempo, um défice constitucional, que nos cumpre saldar, e um défice democrático que aflora em todas as nossas incursões, teóricas e práticas, no terreno da democracia. É chegado, pois, o momento de não mais permitirmos que o espaço desertado pela responsabilidade política venha a ser ocupado pela indiferença partidária, à revelia de uma sociedade civil que se mostra cada vez mais interessada nos problemas da regionalização. Cada um de nós deve, por isso, a si próprio o mínimo de determinação para a solução deste problema, que a todos diz respeito.

Os Estados, pequenos e pobres como nosso, são sempre construções complexas que não podem ser formatados a partir de um ou vários conceitos, resultantes de pressão política ou outra. Para uma válida apreciação da complexidade envolvida, torna-se necessário captar esses fenómenos na sua plenitude e pluralidade dos seus momentos conceptuais.

Os conceitos que dão forma e substância a teoria de Estado devem, portanto, entender-se como instrumentos mediante os quais tentaremos conseguir uma orientação inteligente nessa pluralidade e solucionar as questões pertinentes de modo racional. Os conceitos que, para tal fim, construímos, surgem como antecipações experimentais, resultantes da mera imaginação produtiva, de hipotéticas soluções de problemas. Por isso, ficam expostas a crítica permanente que obriga a revisões constantes, sobretudo dos dados experienciais. Assim que se verifique inadequação ou inconsistência perante a realidade, devem ser corrigidas. Trata-se de um método dialéctico que exige a compreensão da ciência da Karl Popper, que os estudiosos das ciências políticas deviam utilizar como indispensável ferramenta de análise científica. 

Experiência histórica

Os cabo-verdianos formam todos uma comunidade jurídica, na medida em que estão submetidos a uma e a mesma ordem jurídica.

O Estado cabo-verdiano é, portanto, mais do que uma construção normativa meramente abstracta. Ele é também uma realidade social em que os indivíduos conferem eficácia às normas ao executa-las na vida prática. Graças à aquisição empírica dos conhecimentos que tal processo envolve, transitamos do terreno de uma teoria «pura» de direito e atingimos uma realidade meramente ideal do Estado. O indivíduo assume, no decorrer dessa socialização, os padrões de conduta do seu grupo, que se lhe apresentam como modelos de expectativa de comportamento correcto na comunidade em que se insere. Os padrões de conduta institucionalizados afectam o indivíduo nos seus diversos papéis, integrando-o, desta forma, nos diversos subsistemas da sua comunidade.

Cabo-verdianos de distintas culturas vivem em mundos de representações diferentes nos quais procuram apreender e articular os fenómenos e conhecimentos mediante diferentes estruturas mentais.

Não é, pois, por acaso que numa época, em que se dissolvem tradicionais comunidades de vida, acolhedoras e disciplinadoras, em que igualmente as ideologias integradoras perdem a sua inquestionabilidade e a sua função orientadora, é uma época de massas não estruturadas, e ao mesmo tempo uma época de líderes carismáticos. Tem feito uma longa caminhada na história a tese de que os homens possuiriam uma ânsia profunda de se submeterem a um líder e suas sugestões, quer esse líder se chame Robespierre, Hitler, Mao-Tsé-Tung, Lumumba ou Cabral. Na realidade, havaria para o caso de Cabral que nos está mais próximo, uma atracção quase que irresistível, na audiência, na credulidade, na complacência quase apaixonada face ao líder, sem nunca se justificar a racionalidade subjacente a atitudes tão fortemente ancoradas no subconsciente colectivo.

Convém sublinhar que a experiência histórica também nos ensina que doutrinários, senhores de sugestões aparentemente ricas, são personalidades frequentemente com características monomaníacas. Podem prosperar em sociedades de massas, difusas e desprovidas de orientação ideológica. Neste caso tais personalidades podem também produzir um impacto político, que não se pode explicar racionalmente.

  Os dois exemplos acabados de referir revelam que tais líderes se insinuam num vazio psicológico, que eles satisfazem uma necessidade fundamental de liderança, certeza de orientação e comprometimento ideológico que a sociedade pluralística de massas deixa insatisfeita.

A conduta numa sociedade como a cabo-verdiana orienta-se por normas, representações sócio-éticas, objectivos e modelos «ideais» bastante diferenciados. As relações de vida social são reguladas, em larga medida, não através de normas jurídicas mas através de normas de ética e de moral social. Este facto fornece um argumento de peso para fundamentar, quase que por si só, a existência de uma regionalização em Cabo Verde. O quotidiano de estreita relações de vida, por exemplo na família ou nas relações entre amigos ou de boa vizinhança, é regulado não pelo direito mas por preceitos extra-jurídicos relativos ao tracto social, por deveres de respeito mútuo e ajuda recíproca.

Para que se sintam amparadas, reivindica-se para as ilhas no quadro da regionalização, uma ampla autonomia, uma vez que são dotadas de características próprias e radicados numa determinada região.

Relaciona-se com esta reivindicação a exigência de um adequado desenvolvimento económico e cultural das regiões. Impõe-se, neste quadro, pôr termo à exploração regional, a qual consiste no facto de receitas reunidas pelo trabalho de todo o país serem atribuídas, em detrimento das ilhas, de uma forma muito desproporcionada, a uma região central, por exemplo para fins de assistência médica, promoção cultural ou abertura de novas vias de comunicação.

Com exigências dessa natureza, a regionalização ultrapassa a estrita programática de política regional e abre caminho para programa mais abrangente no quadro mais amplo do princípio da subsidiariedade. Tem-se em devida conta que a aplicação deste princípio contribui para a redução acentuada e progressiva dos conflitos regionais, culturais e outros, e abrem caminho a compromissos. Na regionalização reflecte-se também a necessidade, já implícita no pensamento da nacionalidade, de ter e acarinhar uma pátria, numa comunidade tradicional e cultural, e o desejo a ele associado de conservar e enriquecer a multiplicidade e singularidade culturais face às forças igualitarizantes trazidas por determinismos civilizacionais.

De uma maneira mais genérica, a regionalização procura eliminar ou mesmo neutralizar o exagerado centralismo do Estado-Nação de Cabo Verde, que está ainda fortemente conotado com o partido único que lhe assinou o certificado de nascimento. Em vez de exaltar o respeito pelo princípio de nacionalidade, o partido único amarrou-nos à estreiteza das ideologias que cantam os amanhãs que morrem na escuridão das madrugadas. Isto constitui um nítido retrocesso, mesmo comparado com a era colonial precedente em que podíamos, em regra, conservar as nossas singularidades culturais e estruturas sociais típicas.

Havia então uma espécie de sentimento de coesão baseado no território das ilhas, que resistia à força repressiva que o simbolismo da resistência acarreta como carga insuportável. São Vicente, considerado tantas vezes de forma politicamente despudorada, em discursos oficiais ao mais alto nível, não como parcela do todo nacional, mas tão simplesmente como objecto de compensação de interesses, decorrentes de uma leitura distorcida da nossa história.

Estado, Democracia, Cidadania

Todo direito existe em razão da liberdade moral inerente ao indivíduo. Logo, o indivíduo e apenas o indivíduo têm capacidade jurídica. O cabo-verdiano capaz de se auto-determinar seria, por conseguinte, o sujeito jurídico por natureza. A sua situação insular devia em princípio servir de esteio à regionalização, que carrega consigo características próprias nos domínios linguístico, cultural e religioso.

Com os conceitos de centralização e descentralização aborda-se, à luz da regionalização que defendemos, um problema fundamental da repartição adequada das funções do Estado.

Uma administração demasiado centralizada corre sempre o perigo de se afastar dos cidadãos, como está em vias de acontecer em Cabo Verde. Uma exagerada centralização prejudica uma faixa alargada dos cidadãos e o próprio Estado. Ela conduz a uma situação em que as instâncias centrais ficam inundadas de informações de menor importância, o que leva a discussões e decisões de ordem secundária. Quanto mais serviços estiverem reunidos numa só autoridade, tanto maior é o «atrito interno»; tanto mais se multiplicam as interferências internas de competências, que conduzem a uma pluralidade de agentes do Estado terem que participar no mesmo processo; tanto mais moroso se torna, consequentemente, o processo decisório.

Através da regionalização, estamos convencidos, libertam-se as instâncias centrais, (a capital), de uma inundação de informações e da necessidade de tomar um número excessivo de decisões. Ao delegar uma parte do tratamento de informações e da responsabilidade decisórias nas instâncias hierarquicamente inferiores, nas regiões, no caso que temos em mente, fomenta-se, simultaneamente o empenho destas regiões em favor da organização e funcionamento do Estado.

A regionalização é, sobretudo, um meio para criar unidades organizatórias dentro das quais são possíveis uma auto-administração e uma participação democrática dos cidadãos num quadro de vida mais abrangente, entre o domínio nacional e a área municipal. Como órgão supra municipal, a região terá à sua disposição os meios indispensáveis para complementar as autarquias locais, na busca de soluções no caminho do desenvolvimento económico e cultural do país, em geral, e de cada uma das suas ilhas, em particular.

Há caso em que os órgãos do Estado só podem cumprir as suas funções em colaboração com outro órgão do Estado. Trata-se de exercício não autónomo do poder de que a referenda é um caso geralmente apontado.

Senado, sua razão de ser

Um outro caso de recurso à cooperação de vários órgãos, na ausência de competência autónoma, é o do sistema bicamaral, também conhecido como Senado. Fala-se em Senado no caso do sistema bicamaral cuja adopção defendemos nos anos 90, quando fizemos uma primeira abordagem sobre a regionalização das ilhas. Em sentido restrito, fala-se deste sistema quando o legislativo é composto por duas câmaras e quando, para aprovação de uma lei, é necessário que ela seja votada favoravelmente por ambas as câmaras. Neste sistema, muito utilizado em regime anglo-saxónico ou destes derivados, enquanto uma câmara seria composta por deputados do povo (câmara baixa), a outra câmara (câmara alta) seria a representação das ilhas. Neste caso a câmara alta daria voz e fazia valer os interesses de cada ilha. Para o caso de Cabo Verde, sugerimos já em várias ocasiões a eleição de dois senadores por cada ilha, que dava um total de dezoito, numero esse que se subtrairia do actual número de setenta e dois deputados. Uma tal reforma do Estado contribuiria para equilibrar o processo decisório legislativo e afastar desequilíbrios de índole simplesmente maioritária. Nesta perspectiva de solução legislativa, Santiago, que é a maior ilha e a mais povoada, disporia de dois senadores, logo dois votos, tal como a Brava, a ilha menor e menos povoada, contribuiriam para a moderação e controlo do poder de grupos. Isto corresponde não só à ideia básica de separação dos poderes mas também ao modelo do estado pluralista cujo fim deverá ser o de facultar um compromisso equilibrado entre uma pluralidade de interesses e opiniões existentes.   

Aristóteles justifica a comunidade política pela natureza social do homem, que só em comunidade chega ao pleno desenvolvimento da sua personalidade. Esta tendência do homem para formar uma ordem comunitária, revela-se logo no facto de ele possuir uma linguagem própria. Distingue-se, além disso, dos outros seres vivos por ter um sentido para o bem e o mal, para o justo e o injusto e outras noções semelhantes. É precisamente por ter em comum estes aspectos que ele constitui a família para proteger-se a si próprio, e cria o Estado para proteger a sua família.

A ordem de que necessita pois o homem é produzida pela comunidade política: a ordem aí reinante é o direito que na sua origem é a decisão acerca do que é justo.

A ideia democrática de que o poder soberano parte do povo não é invenção dos tempos modernos. É um tema que já era familiar à Antiguidade. Em Aristóteles, tal como nos ensina Karl Popper, encontra-se a ideia de que no Estado democrático residiria um elemento essencial de liberdade para o cidadão no facto de «governar e ser governado alternadamente». É neste contesto que vale para todos a mesma liberdade.

À luz dos ensinamentos de Popper que acabamos de referir, quem pretender elevar o «governo da maioria» a fundamento da acção estatal não deve sobretudo perder de vista também os limites principais inerentes ao princípio maioritário. Este último não abrange o direito de eliminar as condições em que se baseia designadamente o respeito pela dignidade humana e o direito, dela resultante, de participação permanente e igual de cada indivíduo; isto inclui simultaneamente a possibilidade de actuais opiniões minoritárias se converterem em futuras opiniões maioritárias. Para além desta garantia mínima, as normas hierarquicamente superiores (aprovadas por maioria) podem traçar também limites de Estado de Direito a decisões maioritários da hierarquia inferior. Deste modo e na aplicação da lógica que lhes estão implícitas, as decisões maioritárias do legislador encontram o limite em especial nas garantias dos direitos fundamentais consagrados na Constituição.

A ideia democrática encontrou um aprofundamento na ideia de autonomia de Kant. Ao lado da autodeterminação como princípio político encontra-se a autodeterminação com princípio moral. Ambas se podem relacionar reciprocamente: na democracia a formação da vontade política pode encontrar também as suas raízes últimas, precisamente, nas decisões de consciência guiadas pela razão de cada cidadão. Nesta óptica a democracia surge como a forma de Estado que concede a autonomia individual a mais ampla oportunidade de desenvolvimento até ao âmbito político, e como a forma que respeita, na maior medida do possível, a dignidade do homem.

O sistema parlamentar apresenta-se, neste quadro, como um compromisso entre a exigência democrática de liberdade e o princípio da divisão diferenciada do trabalho que condiciona todo o processo social e técnico. A especialização e profissionalização da actividade parlamentar acabou, porém, por retirar das mãos do povo, em medida considerável, através dos seus órgãos de representação, o controlo dos seus próprios actos. Daí poder-se concluir que o princípio da representação encontra-se em contradição com o carácter fundamental originário da ideia de liberdade democrática. Tendo constatado que o sistema representativo e o seu estabelisment afastam-se tanto mais dos cidadãos, quanto mais centralizado for o poder político, Tocqueville apresenta uma receita contra o despotismo democrático centralizador que poderia, em nosso entender, ser aplicada em Cabo Verde com vantagens imediatas para o bom funcionamento do nosso sistema representativo. A parte essencial do remédio prescrito contra o despotismo democrático centralizador, consiste no fortalecimento da autonomia administrativa regional. No tocante à exigência de uma descentralização do poder público, as teses de Tocqueville coincidem, em larga medida, com as teses subscritas pelos defensores vanguardistas da administração autónoma: segundo estes, quanto mais se descentraliza o poder de decisão política, tanto maior é, regra geral, para a generalidade dos cidadãos, o campo de um engajamento político próprio. Esta é a ideia condutora de uma democracia com poderes divididos, ou seja o poder político encontra-se repartido entre o poder central (a Praia) e as ilhas, consistindo a sua base um complexo ramificado de unidades administrativas autónomas (as ilhas), assistindo a cada uma delas o dever de regular e tratar os seus assuntos no exercícios de competências próprias contra um fundo de administração autónoma, em sentido democrático. Numa autarquia, numa região ou numa outra entidade com autonomia administrativa, um cidadão cabo-verdiano se encontraria no espaço em que a comunidade politica ganha para ele uma outra dimensão humana.

Descentralização

A descentralização que conduz à autonomia administrativa referida nestes apontamentos é consubstanciadas numa regionalização que sendo aplicada poderia colocar o Estado de Cabo Verde em situação de relativa imunidade a crises sociais e lhe concederia uma vantagem como país regionalizado, na sua procura de parcerias no mundo desenvolvido, em marcha acelerada para uma total globalização. Resumindo: o nosso país ganharia com a regionalização dividendos internos e alargaria as fronteiras de cooperação com os países da nossa diáspora, na sua grande maioria senhores de uma experiencia sobre regionalização que nos seria certamente benéfica, como fonte de recursos teóricos e experiencia pratica.

A tendência implícita na regionalização para entregar específicos sectores da vida nacional a uma auto-regulação democrática é cada vez mais um imperativo, mas ela encontra naturalmente um limite na supremacia das competências da comunidade estatal de nível superior, pois só esta garante, em ultima instância, a coordenação pacífica das comunidades que são as ilhas.          

  

Mindelo, 22 de Fevereiro de 2018

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