Filinto Elísio
Das razões alheias
Não consigo entrar e permanecer nessa contenta absolutista e triunfante | temperada a fel e ódio | Nem me fio às apreciações casuísticas | de fogo e fúria | Os meus neurónios não funcionam com certezas sacrossantas | mas sim florescem com dúvidas filosóficas e criativas | Paul Ricoeur dizia que “há também verdade noutro lugar que não em nós próprios” | Acredito nesta humildade | e nesta relatividade | do amor como pão nosso de cada dia | e que emerge na fímbria da sensibilidade poética | A introspecção e o diálogo com o outro | o colocar-se no alternante lugar do outro | e o entender a razão alheia | são buscas da tolerância que me realizam.
Je suis Serra Leoa
Um devastador deslizamento de terras provocou a morte de mais de seiscentas pessoal e outras tantas ainda desaparecidas, para além de milhares de deslocados, na Serra Leoa. Em cima desta tragédia, há o risco da cólera e o de centenas de crianças órfãs serem sequestradas pelas redes de tráfico humano. Choca reconhecer que a causa da desgraça deve-se mais ao elevado número de pessoas, em mais franciscana miséria, viverem nas áreas de risco do que às chuvas torrenciais em si. Choca também a consciência de que estes desastres naturais devem-se em muito às mudanças climáticas que provocam a desflorestação e o êxodo rural. Choca ainda a insensibilidade da opinião pública mundial (inclusive a de certa elite africana) que insiste em ostracizar a África e a ser seletiva (para não dizer racista, quando não alienada) na sua solidariedade em face à desumanidade.
Insensibilidade
As notícias não são animadoras. Presumo que estejamos num processo alucinante de perda de sensibilidade. Só por isso alguns não encaram as Mudanças Climáticas como um terrorismo ambiental, nem pressentem que a causa ambiental, mais que as ideologias que nos atrapalham, determina nossa sobrevivência. O discurso conservador, assim como a manifestação racista, xenófoba, misógina, belicista e nacionalista, na ordem do dia. A violência, como alternativa ao diálogo, e o terror, exercido no centro e nas margens, pelos mais fortes e pelos mais fracos, ocupam a forma de estar em política. A percepção do outro, já não tomado como eu-próprio (igual), e do outro, já nem tomado como ele-próprio (diferente), começa a perder sentido e a alteridade, que nos fundamenta, de tão conflituosa, recusa o ser-Para-outro. Em verdade, estamos a perder valores e a apagar a nossa própria subjetividade. Será que entrámos na rota de colisão com a humanidade que nos define?
Cegueira (Sugestão de leitura)
A ‘cegueira’ (que não a invisibilidade), que torna as pessoas acríticas, é o estado de ser que interessa aos dominadores. Cegar para reinar, em parábola de Saramago. Pessoalmente, gosto muito de Saramago, iconoclasta que foi em relação à superestrutura maior, bem como sua teologia, que nos domina e nos condiciona o arbítrio, a rebeldia, a poesia, o tesão, o brilho, a idiolatria e a individualidade. Mostrar o absurdo de tudo isto, como fez Albert Camus n’ O Estrangeiro. A minha sugestão de leitura desta feita vai pela Bíblia. Pelas Escrituras, reler Sermão da Montanha. Olhai, sem ‘cegueira’ os lírios do campo.
Mordacidade zero (Poiesis)
Poeta | evade-te monge | E tanto quanto à pressa | eremita | posto que retornes | lugar algum e às desoras | da poesia que teces | Não embarques no pastiche das indústrias culturais | e no canto dos cisnes em plena viagem | Ilhas que não em redoma de água | luzir de tua cárcere | como teu puro sentir | viandante em terra-longe | Livre | tanto quanto relampeje no teu verbo | o anarca escondido | Sejas também | a incessante sina tua | Poeta | não te fies na pose modernaça | nem te percas na estranhíssima prosódia da cidade | Meu andarilho | circular como me tentas | sina de labirinto e queda no impreciso | no ‘sorria’ à videovigilância | e no só ‘sorria’ | abismo que és.