Por: Germano Almeida
É de certa forma gratificante constatar que a maldade dos seus algozes judiciais não tem conseguido contaminar o espírito do deputado Amadeu Oliveira, preso há mais de três anos num processo iniciado através de um crime de prevaricação cometido por um juiz desembargador, terminado por um acórdão do Tribunal Constitucional que faria inveja aos juízes nazis. Com efeito, diante de todas as arbitrariedades, fingidamente em nome da lei, de alguns magistrados sobre a sua pessoa, ele que também é licenciado em Direito e estudou nas mesmas escolas, e se calhar pelos mesmos manuais que os seus verdugos, ao ver como eles inventam interpretações de leis e princípios jurídicos exclusivamente destinados a continuar a lixar-lhe a vida, podia acontecer ele ficar amargurado e descrente da Justiça. Mas não, ele continua de coração leve, mesmo de dentro da cadeia ele continua a preocupar-se com os seus amigos, como aliás foi o caso do ministro que foi acusado de algo relacionado com ele Amadeu e em que saiu como um leão em defesa do outro. Foi bonito, foi muito bonito!
Aliás, a maioria das pessoas ignora que o Amadeu era simplesmente defensor oficioso do indivíduo que “ajudou” a sair do país, sequer era advogado constituído recebendo honorários. Mas nomeado defensor, da leitura do processo considerou que o homem estava sendo injustamente acusado e punido e tomou a peito a sua defesa, um erro que devia ser evitado no exercício de determinadas profissões, tomar como nossas as causas dos outros, mas do qual, infelizmente, nem todos têm a sorte de escapar.
É como agora: Amadeu escreveu umas palavras muito sentidas dirigidas à dra. Maria João Novais e a mim próprio, lamentando-nos por termos acreditado e perdido tanto tempo à volta da questão do seu pedido de devolução do computador que lhe foi abusivamente retirado, tudo como se fossemos nós os prejudicados e não ele precisamente.
Bem, em certo sentido ele teve razão em expressar esse sentimento de pena. Mesmo eu, que estou antigo, continuo a sentir arrepios na alma de cada vez que constato uma perversidade judicial, quanto mais ela que ainda é jovem e ainda crente na impoluta seriedade dos magistrados. Porque todos nós somos licenciados em Direito e todos temos uma noção, mesmo que seja mínima, da chamada hierarquia das leis. Ora quando o diretor-geral dos serviços prisionais, Odair Pedro, muito provavelmente licenciado em Direito, assina um despacho em que afirma, preto no branco, que um decreto-lei não pode produzir efeitos porque uma portaria o impede, não só nós, Maria João e eu, mas sim todos os de alguma forma ligados ao mundo jurídico deveriam sentir-se triste porque a pergunta que se impõe será esta: até onde se pretende ir neste desconchavado arremedo de democracia e estado de direito democrático?
O diretor Odair Pedro produziu o despacho, o mesmo foi publicitado, quer dizer, o absurdo de uma portaria de 2016 revogar um decreto-lei que lhe é muito posterior, foi publicitado na sua violência crua, e não se escutou nenhum murmúrio das pessoas próximas do direito, sequer uma chamada de atenção para os perigos que comporta tal atropelamento da ordem jurídica.
Porque quando entidades da responsabilidade de um diretor-geral dos serviços prisionais escreve que uma portaria derroga um decreto-lei e todos assobiam pró lado, sem dúvida que algo muito grave está minando a sociedade. Porque essa decisão do diretor-geral dos serviços prisionais é de uma gravidade dificilmente ultrapassável, sobretudo porque, no caso concreto, ele tem poder legal quase divino para impor essa aberração como norma de cumprimento obrigatório. E nessas lamentáveis condições, a gente não deixa de sentir-se angustiado diante da pergunta da qual de antemão já sabemos sem resposta: quem guarda os guardas?
A Justiça que é apresentada ao povo como sendo de olhos vendados, tem afinal os olhos destapados e bem abertos para muitos, sendo que para o deputado Amadeu Oliveira esses olhos são e estão grilidos e persecutórios, numa sanha que devia envergonhar, se ainda houvesse réstia de vergonha em muitos dos que nos governam. Esquecidos que a história permanece para além de nós, e certamente que ficará registo que dirá que no ano de 2025 o diretor-geral dos serviços prisionais, com o único objetivo de prejudicar um recluso, decidiu que um direito concedido por um decreto-lei podia ser derrogado por uma portaria.
Mas a preocupação que assusta é que os poderes constituídos, a começar pela Assembleia Nacional e a terminar no diretor-geral dos serviços prisionais, passando por toda a hierarquia dos tribunais do país e também pelo governo, não se mostram minimamente preocupados com o devido respeito pelas leis, antes alegremente as violando como se cada um deles fosse um rei absoluto dentro da sua quinta.
No rescaldo da segunda guerra mundial, o Estado Alemão Ocidental implementou um programa oficial de desnazificação a que foram obrigatoriamente submetidos magistrados, funcionários superiores, empresários e ainda outras pessoas de relevo na sociedade civil. Seguindo tão excelente princípio, acho que no fim deste conturbado período de desnorte judicial que estamos a viver, um oficial programa, não digo de democratização, mas pelo menos de urgente e necessário regresso à legalidade, deveria ser implementado entre nós, muitos dos nossos magistrados e outras gentes que exerce poder precisa reaprender que fascismo joga é com autocracia, não com democracia.
