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Não, Sr. Primeiro Ministro, a saraivada tarifária de Trump afeta, sim, a economia!

Por: João Serra*

O Primeiro-Ministro afirmou, no dia 03 de abril, que as medidas tarifárias anunciadas pelo Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, “não representam, pelo menos por agora, razões de preocupação para o país”.

“As tarifas não vão incidir sobre as remessas de emigrantes, seguramente. Isto é mais de relações comerciais, Cabo Verde não tem relações comerciais intensas de importação e exportação com os Estados Unidos”, alegou.

Se é verdade que as relações comerciais entre Cabo Verde e os EUA são residuais, já não é verdade que, indiretamente, o país não vai ser afetado pelo caos tarifário criado pelo Trump, como veremos a seguir.

Trump anunciou a 2 de abril novas taxas aduaneiras (chamadas de “tarifas recíprocas”), sobretudo dirigidas a dezenas de nações que apresentam excedentes comerciais significativos com os EUA, incluindo um imposto de 34% sobre as importações da China e 20% sobre a União Europeia. Para além disso, impôs uma taxa-base de 10% sobre as importações de todos os países.

A medida provocou um autêntico descalabro nas bolsas mundiais e algum desgaste político ao Presidente. Na sequência, Trump recuou, anunciando a 9 de abril a decisão de suspender por 90 dias a aplicação das “tarifas recíprocas” contra a maioria dos países, com exceção da China. Este país viu, entretanto, a tarifa aumentada para 145%, tendo retaliado, subindo a tarifa sobre produtos norte-americanos para 125%. 

Segundo conceituados especialistas, o “Dia da Libertação”, como Trump designou o dia do anúncio das tarifas, a saraivada de taxas aduaneiras norte-americanas, associada à extraordinária imprevisibilidade de Trump, vai arrefecer a economia e aumentar a inflação um pouco por todo o mundo, o que lhes faz temer uma recessão tanto nos EUA como a nível global.

Na verdade, quando uma economia de grande dimensão, como a dos EUA, impõe tarifas alfandegárias significativas sobre bens importados, ocorre, de forma imediata, um aumento dos preços internos desses produtos, desencadeando pressões inflacionistas e criando efeitos recessivos abrangentes. 

A partir da implementação das novas tarifas impostas pelo governo Trump, tem-se registado um conjunto de efeitos que transcendem as fronteiras dos EUA e atingem, de forma direta ou indireta, várias economias abertas e interligadas.

No caso específico de Cabo Verde, os impactos assumem uma dimensão indireta e multifacetada, por se tratar de uma nação cuja atividade económica é caraterizada por uma elevada dependência das importações e cuja moeda, o escudo, está ancorada ao euro num regime de paridade fixa.

Para compreender a abrangência dos efeitos na economia cabo-verdiana, importa analisar, em primeiro lugar, o mecanismo das tarifas e a forma como estas influenciam o comércio internacional. As medidas protecionistas anunciadas pelo Presidente Trump têm como objetivo, primordialmente, dificultar a entrada de produtos estrangeiros nos EUA. Ora, os EUA não são um dos principais parceiros comerciais de Cabo Verde, uma vez que o comércio exterior deste país, tanto em importações como em exportações, está fortemente orientado para a Europa – cerca de 70% de todos os bens de consumo e investimentos provêm desta região geográfica, para onde são dirigidas cerca de 95% das exportações.

Apesar disso, os reflexos dessas medidas afetam indiretamente Cabo Verde, por este ser um dos países com os quais a Europa mantém relações comerciais intensas. Assim, quando o protecionismo afeta a atividade industrial e a prestação de serviços, provocando uma desaceleração do crescimento económico ou alterações nas cadeias de abastecimento no continente europeu, os efeitos repercutem na infraestrutura comercial e nos custos dos produtos que chegam a Cabo Verde.

O impacto na economia nacional passa, sobretudo, pelo aumento dos preços dos bens importados. Uma vez que a maior parte dos produtos consumidos e utilizados para investimento em Cabo Verde provém da Europa, verifica-se uma tendência para o encarecimento dos bens (intermédios e de consumo). Este aumento de custos deve ser atribuído à redução do volume global de comércio, à pressão inflacionista resultante de um “efeito bola de neve” que se verifica quando produtores europeus veem reduzida a procura dos EUA e, consequentemente, ajustam os seus preços para tentar recuperar as margens de lucro, repassando parte desses custos para os mercados de exportação.

A situação torna-se ainda mais crítica para Cabo Verde devido ao regime de câmbio adotado. O escudo cabo-verdiano, ancorado ao euro, limita a liberdade de condução da política monetária, na medida em que qualquer variação significativa na moeda de referência – o euro – incide automaticamente sobre o valor do escudo. 

Assim, se a aplicação das tarifas e a instabilidade no comércio internacional levarem a uma depreciação do euro face a outras divisas, como o dólar dos EUA, o sistema de paridade fixa implicará que Cabo Verde terá de ajustar os preços dos produtos importados em escudos, independentemente da conjuntura interna. Isto poderá originar um aumento generalizado de preços, contribuindo para a inflação, pois os bens essenciais – como alimentos, combustíveis e matérias-primas, negociados em dólares – tornar-se-ão mais caros quando convertidos para a moeda local.

Em termos práticos, se o euro se depreciar face ao dólar em função das medidas protecionistas e dos reajustes nos fluxos comerciais globais, Cabo Verde terá de pagar mais escudos para adquirir a mesma quantidade de bens importados em dólares, agravando o défice da balança comercial. Além disso, para Cabo Verde, a depreciação do euro face ao dólar aumenta o custo do reembolso da dívida pública externa, para além de impactar o contravalor, em moeda nacional, do próprio “stock” de dívida externa contraída em dólares. Este “efeito cascata” aumenta a vulnerabilidade do país, que, para além de enfrentar uma inflação importada, terá de lidar com o encarecimento da dívida externa contratada em dólares.

Já num cenário de depreciação do dólar face ao euro, seria, sobretudo, o BCV a arcar com os prejuízos, tendo em conta que, pelo menos, 25% das suas reservas internacionais líquidas são constituídas por ativos denominados em dólares.

Finalmente, cumpre sublinhar que uma eventual recessão económica global, em especial na Europa, teria impactos ainda mais profundos. Em primeiro lugar, a desaceleração do crescimento económico europeu reduziria os investimentos e as remessas de divisas que, historicamente, acompanham o fluxo dos emigrantes cabo-verdianos. Estes emigrantes constituem uma fonte crucial de entrada de divisas no país, contribuindo de forma significativa para o stock de reservas externas. Assim, a diminuição ou o atraso dessas remessas, em contexto de recessão, agravaria a fragilidade das contas externas de Cabo Verde, comprometendo a capacidade do país para gerir a balança de pagamentos e para honrar compromissos financeiros externos.

Contudo, só o tempo dirá como será a abrangência e a profundidade do impacto em causa.

Praia, 12 de abril de 2025

*Doutorado em Economia

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