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Cabo Verde entre a Formalidade e a Informalidade: Desafios para um Mercado de Trabalho Sustentável

Por: António Medina*

O mercado de trabalho em Cabo Verde espelha as tensões profundas do nosso modelo de desenvolvimento: um país que, apesar dos avanços democráticos, sociais e económicos, continua a debater-se com fragilidades estruturais que colocam em causa a coesão social e o próprio futuro económico. Um desses desafios, talvez o mais negligenciado e, ao mesmo tempo, mais urgente é o da elevada taxa de informalidade. De um lado, temos um setor formal que falha em oferecer estabilidade e absorver a maioria da população ativa. Do outro, uma economia informal que se impõe como “tábua de salvação” para quase metade dos cabo-verdianos, mas que opera à margem dos direitos básicos e das garantias sociais.

Dados Recentes sobre a Informalidade: Um Alerta Nacional

Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes a 2023, 48,7% da população empregada em Cabo Verde — aproximadamente 92.795 pessoas — encontravam-se no setor informal. Estes números, por si só, revelam muito mais do que estatísticas frias: evidenciam um problema estrutural que deveria ocupar o centro do debate público e das prioridades governamentais.

A informalidade é muitas vezes romantizada como sinónimo de resiliência e criatividade do povo cabo-verdiano e, de facto, há mérito e coragem em quem sobrevive sem rede. No entanto, essa leitura superficial ignora que estamos perante um modelo insustentável. Um país em que quase metade da população ativa trabalha sem acesso a segurança social, sem salário mínimo garantido, sem qualquer estabilidade ou proteção em caso de crise —não pode, com seriedade, reivindicar um desenvolvimento justo e inclusivo.

Uma Realidade Diversificada, mas Injusta

A informalidade no país não é homogénea. Segundo o mesmo relatório, 47,5% dos informais são trabalhadores por conta de outrem e 38,2% são trabalhadores por conta própria. Contudo, independentemente da categoria, a informalidade significa quase sempre a mesma coisa: trabalho precário, rendimento instável e ausência de direitos.

A disparidade regional é ainda mais preocupante: enquanto no meio urbano a informalidade atinge 48,7%, no meio rural ultrapassa os 73,3%. Esta diferença reflete a ausência de políticas públicas eficazes para as zonas do interior e rurais, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão social que dificilmente se romperão sem um investimento sério e sustentado.

O Setor Formal: Expectativas Defraudadas

Importa dizer, com clareza, que o setor formal cabo-verdiano também está longe de cumprir o seu papel. Muitos trabalhadores formais vivem situações igualmente precárias: contratos temporários, baixos salários, ausência de progressão profissional e vínculos frágeis com a segurança social. A sazonalidade, particularmente nos setores do turismo e da agricultura, agrava a instabilidade. A formalidade em Cabo Verde, para muitos, é mais aparência do que garantia.

A tudo isto soma-se um sistema educacional que, embora tenha progredido em termos de acesso, ainda falha em oferecer competências práticas alinhadas às necessidades reais do mercado. Há um desfasamento preocupante entre a formação académica e o mundo do trabalho, o que leva a que jovens diplomados se encontrem sem emprego ou com empregos muito abaixo das suas qualificações. O paradoxo é evidente: temos milhares de jovens formados, mas o mercado formal continua a não os absorver e a informalidade continua a ser o destino mais provável.

A Fuga de Cérebros: Fracasso Sistémico

A saída de quadros qualificados para o exterior, a chamada “fuga de cérebros”, é outro sintoma do fracasso em reter talento no país. Este fenómeno é muitas vezes tratado como algo inevitável, quase natural, num país com tradições migratórias fortes. Mas devemos ter coragem de reconhecer que estamos a perder os nossos melhores quadros por incapacidade interna de oferecer perspetivas profissionais dignas.

Perder médicos, engenheiros, professores, investigadores e técnicos especializados significa perder capacidade de inovação, reduzir a competitividade do país e comprometer o futuro de setores-chave. Esta não é apenas uma questão económica, mas de soberania e de dignidade nacional.

A Necessidade de um Novo Paradigma

O combate à informalidade e a construção de um mercado de trabalho sustentável exige mais do que boas intenções. Exige vontade política, estratégia coerente e ações concretas. A formalização deve ser um processo incentivado, não imposto. Nenhum pequeno vendedor ambulante ou artesão vai correr o risco de legalizar o seu negócio se isso significar, na prática, menos rendimento, mais burocracia e mais encargos fiscais. É fundamental criar um ambiente em que formalizar seja sinónimo de ganhar  e não de perder.

O governo deve adotar políticas fiscais diferenciadas para micro e pequenas empresas, simplificar os processos de registo, oferecer acesso a crédito e incentivar a adesão à segurança social com mecanismos adaptados à realidade dos pequenos empreendedores. Não se trata de “punir a informalidade”, mas de criar condições reais para que a formalidade se torne uma alternativa viável e desejável.

Além disso, urge uma reforma séria da formação profissional, com foco em setores com potencial de crescimento como o turismo sustentável, a economia digital, as energias renováveis e a economia azul. A ligação entre escolas técnicas, universidades e o setor produtivo deve ser reforçada, para garantir uma transição mais suave da educação para o emprego.

Um Compromisso Coletivo Urgente

Este é um combate que não pode ser deixado apenas nas mãos do Estado. O setor privado, as câmaras municipais, as organizações da sociedade civil e as instituições de ensino devem ser parte ativa na construção de soluções. Trata-se de um desafio nacional, que exige um compromisso coletivo.

Cabo Verde não pode continuar a aceitar que metade da sua força de trabalho viva num sistema paralelo, à margem da lei, sem direitos nem voz. Se queremos um país justo, resiliente e preparado para os desafios do século XXI, é essencial começar por onde tudo começa: o trabalho.

O trabalho é, ou deveria ser, o principal instrumento de inclusão, de cidadania e de dignidade. Um mercado de trabalho justo, que ofereça oportunidades reais, é o alicerce de qualquer sociedade desenvolvida. Cabo Verde tem talento, tem capital humano, tem potencial. Mas para transformar tudo isso em progresso real, precisamos de coragem para enfrentar os nossos próprios bloqueios.

A informalidade não é inevitável. É o resultado de escolhas ou da falta delas. E é hora de escolher melhor.

14/4/2025

*Geógrafo, doutorando em Ciências Sociais

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