Por: João Serra*
“A essência da propaganda não está em fazer as pessoas acreditarem numa mentira, mas em convencê-las de que nenhuma verdade existe”, Hannah Arendt.
A política e a propaganda têm uma relação intrínseca que remonta a séculos. Desde os tempos antigos, líderes e governantes têm utilizado a propaganda como uma ferramenta para moldar a perceção pública, influenciar opiniões e consolidar o poder. No mundo contemporâneo, a propaganda política tornou-se ainda mais sofisticada, com o advento das tecnologias de comunicação e das redes sociais
No caso específico de Cabo Verde, a propaganda política assenta, no essencial, em três pilares: (i) simplificação da realidade, reduzindo questões complexas a slogans ou mensagens binárias (ex.: “nós contra eles”, “certo versus errado”); (ii) repetição, com a reiteração constante de uma ideia, mesmo que falsa, para a normalizar (princípio conhecido como “efeito de verdade ilusória”); e (iii) apelo emocional, utilizando medo, esperança ou indignação para gerar reações imediatas e irrefletidas.
No contexto atual, as técnicas subjacentes aos pilares suprarreferidos são amplificadas por plataformas digitais, que permitem segmentar audiências e disseminar mensagens de forma viral. Como terá afirmado o filósofo Noam Chomsky, “a propaganda é para a democracia o que o cassetete é para o estado totalitário”.
Quando feita de forma rigorosa, equlibrada e bem-intencionada, a propaganda política pode desempenhar um importante papel na promoção do debate democrático e do engajamento cívico, oferecendo aos cidadãos informações claras e imparciais sobre questões políticas de interesse geral. Já quando malfeita e mal-intencionada, ela pode ter impactos negativos profundos na sociedade, nomeadamente a polarização política e a erosão da democracia. Ora, a propaganda política pode contribuir para a polarização política, dividindo a sociedade em campos opostos e exacerbando as tensões, enquanto a demonização dos oponentes e a disseminação de desinformação podem criar um ambiente de desconfiança e hostilidade.
Como escrevi em um dos meus artigos publicados neste periódico, em Cabo Verde a Situação (Governo em funções desde 2016 e o partido que o sustenta) tem usado e abusado das técnicas propagandísticas, para dizer e defender fervorosamente que o país vai bem. Dito por outras palavras, na retórica situacionista, Cabo Verde tem uma governação exemplar, onde as instituições do Estado funcionam e cumprem as suas funções e a sua população vive cada vez melhor, fruto de políticas assertivas e de medidas de uma consciência social sem precedentes. Particularmente, a narrativa de o atual Governo ser o “mais social já existente em Cabo Verde”, é diariamente reiterada com propaganda política, particularmente na rádio e televisão públicas, numa dimensão jamais vista no país, tanto mais que, por vezes, envolve o aproveitamento despudorado da situação de vulnerabilidade por que passam muitos cidadãos residentes.
E só não estamos a viver completamente num mar de rosas, por causa, principalmente, da tripla crise – seca, pandemia de Covid-19 e guerra na Ucrânia.
O retrato de um Cabo Verde que vai bem e onde os mais desfavorecidos têm uma superproteção do Estado, é o país que a Situação tão bem soube vender, e que lhe rendeu em 2021 mais uma maioria absoluta, para a qual contou com forte apoio da comunicação política. Na verdade, as técnicas de comunicação levam a criar espuma mediática e quem está no poder cria essa espuma mediática, com os seguintes objetivos: por um lado, para escamotear o que não está bem e, por outro lado, para que não sejam discutidas as grandes questões, sobretudo estruturais, que preocupam o país, mas que a Situação não quer atacar.
E não é por acaso que o partido que está no poder tem um batalhão de membros a produzir notícias, sobretudo para as redes sociais, notícias essas, umas convenientes, mas outras, autênticos insultos e difamação sobre os opositores ou cidadãos que exercem cívica e educadamente a sua cidadania.
Todavia, ao contrário da política de intensa vangloriação dos supostos enormes e incomparáveis ganhos na governação, o país não vai bem: Cabo Verde é cada vez mais uma democracia sofrível e muito pouco meritocrática, e um país onde a riqueza é distribuída mais “para cima” do que “para baixo”. Na realidade, nem todos os cidadãos são envolvidos na vida coletiva, expressam livremente as suas opiniões e opções político-partidárias e desempenham as profissões pretendidas e cargos em função do mérito, seja porque há condicionamento da liberdade e açambarcamento de praticamente todas as esferas de atividade social, pública e económica, seja porque as oportunidades são diferentes, seja porque há funções a que só alguns (os “boys”) acedem.
Nesse quadro, o poder político não responde aos interesses de todos e não há pejo algum na prática de atos reprováveis que tinham sido veementemente criticados em anteriores detentores do poder. E a perceção da corrupção, do nepotismo e do compadrio é generalizada, tendo aumentado, ultimamente, em resultado de vários e fortes indícios de falta de transparência e de ética na gestão da coisa pública.
E para suportar essa vangloriação, não há qualquer pejo em martelar e atamancar as estatísticas oficiais sobre os aspetos fundamentais das condições de vida da população, criando uma ilusão em torno dos dados relativos ao PIB, à dívida pública e, sobretudo, à inflação e à pobreza, conforme já escrevi em vários artigos publicados neste semanário.
Mas, tal qual a espuma dos dias – uma expressão que é usada para descrever na perfeição tudo aquilo que se perde por não ter essência, por não ter nervo, ou estrutura –, uma propaganda persistente que tem muito de falacioso, parece já não enganar a grande maioria dos cabo-verdianos, que estão a enfrentar, no dia-a-dia, uma situação muito diferente da realidade ilusória. Isto é, o mar de rosas intensamente propalado pela Situação perdeu-se na espuma, ao invadir a área das praias em terra firme.
Pelo menos é o que demonstram, por um lado, os resultados das últimas eleições autárquicas, realizadas a 01 de dezembro do ano passado, e por outro lado, os dados já tornados públicos pela Afrosondagem (AS). Na verdade, o partido de um Governo que propala até à exaustão que é, por assim dizer, o melhor do mundo em fazer crescer a economia, descer a inflação, reduzir o desemprego e a pobreza absoluta e eliminar a pobreza extrema, perde umas eleições numa dimensão histórica, o que é um caso raro. Por outro, a AS tem estado a publicar os resultados do seu mais recente estudo de opinião sobre a qualidade da democracia e boa governação, dos quais destaco os seguintes aspetos, que contrariam a narrativa situacionista vangloriosa e as estatísticas oficiais:
Para a grande maioria dos inquiridos (65%), Cabo Verde está a caminhar na direção errada;
54% da população considera que as condições económicas do país são más ou muito más, e um terço da população ainda está em situação de pobreza;
11% da população vive em situação de extrema pobreza, 44% enfrentam baixa pobreza e apenas 22% não apresentam indicadores de pobreza; e
64% dos cabo-verdianos consideram emigrar, sendo a procura de emprego o principal motivo.
Esses dados refletem um cenário desafiador para Cabo Verde, com uma população descontente e preocupada com as condições económicas e a governação do país.
Vivemos numa era em que a verdade é flexível e as emoções superam a razão. Fazer política para a propaganda não é apenas uma estratégia eleitoral: é um risco existencial para a democracia. Quando os cidadãos perdem a capacidade de distinguir facto de ficção, o contrato social desmorona-se, dando lugar ao autoritarismo ou ao caos.
A solução passa por reforçar a educação, a transparência e a ética no espaço público, de forma a garantir que a mentira nunca triunfe sobre a verdade e o diálogo honesto.
Praia, 08 de fevereiro de 2025
*Doutorado em Economia
