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“Desmartelando” dados atamancados do PIB e da Dívida Pública

Por: João Serra*

No presente artigo, vamos trazer para reflexão dados, a nosso ver, atamancados, do PIB nominal, do stock da dívida pública e do peso deste naquele, enquanto indicadores macroeconómicos que desempenham um papel importante na análise fundamental do desempenho económico do país e da sustentabilidade da dívida pública. Para o efeito, fazemos uso e atualização de alguns dados constantes de outros artigos nossos, também publicados neste periódico.

A partir de julho de 2022, começou-se a observar uma queda nos valores do peso da dívida pública no PIB, queda essa justificada, em boa parte, com o “rebasing” (redimensionamento) da base para o cálculo do PIB.

Com efeito, conforme uma Nota de Esclarecimento, publicada pelo Governo no dia 12 de agosto de 2022, a atualização em baixa dos rácios da dívida pública face ao PIB tem a ver com o facto de o INE ter levado a cabo “um exercício em que utilizou um novo ano base para o cálculo do PIB (ano de 2015), mediante o qual foram atualizados todos os dados publicados anteriormente, até 2017.”

Como consequência dessa atualização, verifica-se uma diferença (para mais) entre o PIB nominal calculado com a nova base e a base antiga (ano de 2007), tendo o valor do PIB nominal de 2015 passado de cerca de 158,7 mil milhões de ECV (antes do “rebasing”) para cerca de 174 mil milhões ECV (depois do “rebasing”).

Essa alteração de metodologia teve impacto no rácio dívida pública/PIB, provocando a sua redução em 2015, de cerca de 126% para cerca de 115%.

Assim, considerando os ganhos obtidos com o “rebasing” do PIB de 2015, o rácio dívida pública/PIB, a partir desse ano, passou a contar com cerca de 15 mil milhões de ECV a mais no denominador, o que contribui para a sua redução desde então, embora, em termos absolutos, o stock oficial da dívida pública (que é inferior ao stock real) continue a aumentar grandemente, passando de cerca de 200 mil milhões de ECV em 2015 para cerca de 298 mil milhões de ECV em 2023, atingindo 113,0% do PIB, conforme dados do Orçamento do Estado para o ano económico de 2025 (OE2025).

Para os anos de 2024 e 2025, prevê-se que, em termos nominais, a dívida do Governo central atinja 305,6 mil milhões de ECV e 312,2 mil milhões de ECV e, em percentagem do PIB, 109,2% e 105,2%, respetivamente, ainda segundo o OE2025.

Com o PIB “rebased”, observa-se uma tendência de redução do peso da dívida pública no PIB, passando de 115% em 2015 para 105,2% em 2025, de acordo com dados e previsões oficiais.

Todavia, os dados relativos ao stock da dívida pública apresentados pelo Governo (stock oficial) não incluem as responsabilidades decorrentes da extinção dos Títulos de Consolidação e Mobilização Financeira (TCMF) e da subsequente transferência das suas contrapartidas para o Fundo Soberano (FS), bem como determinados passivos contratados junto ao FMI, cujo valor poderá ascender a milhares de milhões de ECV. De igual modo, não incluem certos passivos contingentes (avales e garantias concedidos pelo Estado às empresas públicas e privadas, Câmaras Municipais, etc.), que, conforme as boas práticas internacionais, teriam de ser considerados no perímetro da dívida pública, devido à prevalência de determinadas condições que obrigam o seu registo.

Recorde-se que, aquando da sua transferência para o FS, o valor dos TCMF era superior a 11 mil milhões de ECV. Por seu turno, o stock da dívida garantida pelo Estado a 31 de dezembro de 2023 ascendia a cerca de 26,6 mil milhões de ECV, de acordo com dados constantes do OE2025.

Caso abrangesse as situações suprarreferidas, estimo que, em 2024, o stock da dívida aumentaria em pelo menos duas dezenas de milhares de milhões de ECV, isto é, de 305,6 para 325,6 mil milhões de ECV, e o seu peso no PIB também subiria de 109,2 para 116,4%.

Mas mesmo “martelada”, a situação da dívida pública é muito preocupante, podendo já ser insustentável. Pelo menos, é o que se depreende da leitura do último Relatório de Estabilidade Financeira do BCV relativo ao ano de 2023, publicado no mês de agosto de 2024, que, na página 26, diz o seguinte:

“Não obstante a melhoria das contas públicas, a análise da sustentabilidade da dívida pública [Realizada pelo FMI em maio de 2024] sugere que o risco de sobre-endividamento do país mantém-se elevado, persistindo como uma fonte de vulnerabilidade macroeconómica para o país.

Em particular, o elevado nível de endividamento das empresas participadas do Estado, num cenário de baixo ritmo de implementação das reformas setoriais necessárias, representa um potencial risco de materialização de passivos contingentes para as finanças públicas.

Por sua vez, os riscos ao peg do escudo ao euro, principal moeda de contratação da dívida pública externa, aumentaram em 2023, com o aumento do diferencial negativo entre as taxas diretoras do BCV e do BCE [Banco Central Europeu].

A possibilidade de manutenção de uma política monetária restritiva na Área do Euro por um período superior ao antecipado, num cenário de manutenção da política monetária nacional, amplificaria o risco cambial para a sustentabilidade da dívida pública e, assim, para a estabilidade financeira” – fim de citação.

A suprarreferida avaliação feita pelo BCV/FMI veio reiterar o que venho escrevendo sobre a nossa dívida pública, ou seja, que Cabo Verde se encontra numa situação de dívida problemática (“in debt distress”, no original em inglês), situação que poderá agravar-se ainda mais, em consequência do contínuo endividamento do país, para fazer face às despesas correntes insaciáveis de um Governo gastador.

Ora, é praticamente consensual que, particularmente nos países em desenvolvimento, quando o rácio da dívida pública excede os 90% do PIB (“debt overhang”) existe uma elevada probabilidade de redução da taxa de crescimento do PIB e, em decorrência, uma diminuição da capacidade de produção de riqueza para servir a dívida sem grandes sobressaltos.

Para além de se situar acima dos 100,0%, a dívida pública cabo-verdiana também não cumpre um outro importante indicador de sustentabilidade. Refiro-me ao peso do serviço da dívida (juros e reembolso de capital) nas receitas totais que se situava em cerca de 31,0% em 2024, quando o limite máximo recomendado não deverá ser superior a 25%. E este indicador é de suma importância, na medida em que indica se o país tem ou não capacidade para servir a dívida soberana. Igualmente, dá-nos uma ideia da dimensão dos recursos públicos que a dívida pública retira ao país e que poderiam ser utilizados, por exemplo, na valorização dos recursos humanos.

Para 2025, está previsto que o serviço da dívida atinja 30,9 mil milhões de ECV (cerca de 33% do total das receitas correntes), valor aproximadamente igual ao somatório dos valores previstos para a Educação (12,9 mil milhões de ECV), Saúde (10,8 mil milhões de ECV) e Segurança e Ordem Pública (8,4 mil milhões de ECV). Outrossim, 30,9 mil milhões de ECV equivalem a mais de 52,0% das receitas fiscais (impostos e taxas) previstas para serem arrecadadas, o que significa que mais de metade dos impostos e taxas que os cidadãos residentes pagarão em 2025 vai para o pagamento do serviço da dívida. Caso tal situação persista, o Estado, paulatinamente, deixará de desempenhar, de forma necessária e desejável, funções elementares de educação, cuidados de saúde, proteção social e segurança.

E a situação do PIB, da dívida pública e do peso desta naquele seria ainda mais gravosa, caso a realidade não estivesse a ser martelada, de modo a compaginá-la com uma narrativa que tem muito de falacioso.

O próximo Governo, seja de que cor política for, deverá ter em mente que terá uma árdua tarefa pela frente, que é restaurar a credibilidade dos principais indicadores macroeconómicos e sociais, de forma a ter pontos de partida que reflitam as diferentes realidades, e não “realidades” atamancadas em função de conveniências políticas.

Praia, 01 de fevereiro de 2025

*Doutorado em Economia

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