Por: César Augusto Machado
1. NARRATIVAS
A campanha eleitoral para as eleições para a CMSV foi marcada por narrativas discursivas visando convencer o eleitorado do bem fundado das suas propostas, embora o conteúdo tenha sido pouco persuasivo, razão da elevada taxa de abstenção registada.
O MPD assentou o seu discurso em dois objectivos fundamentais, a saber, obter maioria absoluta na Câmara para governar à vontadinha (Augusto Neves dixit) e maioria absoluta na Assembleia Municipal para ter o seu candidato eleito Presidente da mesma (Ulisses Silva dixit).
Os outros concorrentes centraram o seu discurso em afastar o MPD do poder, não formulando qualquer ideia de aliança ou coligação, cada um correndo por conta própria.
Apurados os resultados as narrativas rapidamente evoluíram. O facto evidente é que o MPD, sendo embora o partido mais votado quer para a Câmara quer para a Assembleia Municipal, não obtém a sua almejada maioria absoluta, ficando por maioria relativa nos dois órgãos.
E esse facto, o insucesso (para não falar em derrota), é rapidamente “esquecido” pelo próprio MPD, pelos outros concorrentes, pela comunicação social, enfim,” sumiu” da análise política.
O MPD rapidamente introduziu a narrativa da dimensão da maioria relativa, pondo a tónica nos mais de quatro mil votos que o concorrente mais próximo e começou a preparação dos embates seguintes, a eleição do Presidente da Assembleia Municipal e a distribuição dos pelouros da Câmara.
A narrativa da maioria relativa não obteve, como se pode constatar, contraponto dos outros participantes no pleito eleitoral.
De notar que em S. Vicente, pela segunda vez consecutiva, os resultados eleitorais mostram que os votantes nos concorrentes ao MPD são, eles sim, uma significativa maioria desse eleitorado que, votando neles, disseram não ao MPD e a Augusto Neves.
A soma dos votos no PAICV, UCID, MAIS SONCENTE e MAS dá um total de 15013 para a Câmara e 15435 para a Assembleia Municipal, a que se contrapõe os votos no MPD de 11390 para a Câmara e 11066 para a Assembleia Municipal.
A diferença de votos, nas duas situações, é de 3623 para a Câmara e 4279 para a Assembleia Municipal, números semelhantes aos proclamados 4000 votos que o MPD chamou para si.
Dizer como o MPD diz, com base nos votos expressos que o povo votou mais Augusto Neves para Presidente não é menos verdade do que dizer que a maioria dos votantes disseram querer outrem que não Augusto Neves.
E nesse jogo de narrativas caberia a cada um fazer a sua parte, sendo claro que o MPD vem vendendo a sua narrativa de que a sua maioria, relativa enquanto critério, passou a dar-lhe direitos absolutos ou tendencialmente apontando para isso.
2. EQUÍVOCOS
Neste contexto de narrativas, afirmativas umas, omissas outras, chegamos ao primeiro teste de manifestações de posição para o mandato em curso, com a eleição do Presidente da Assembleia Municipal.
Dum lado a narrativa afirmativa do MPD, que apesar de não ter maioria absoluta, se considera com direito natural ao lugar.
Do outro uma maioria não MPD no órgão, com votos mais que suficientes para decidir o que bem entendesse.
Para os observadores do poder local mindelense e considerando a história mais recente da eleição do anterior Presidente em 2020 que deu direito a um esclarecedor Acórdão do Tribunal Constitucional, esperava-se que a maioria não MPD fizesse valer essa condição.
A crer nas publicações na comunicação social e nas redes sociais, as partes, UCID e PAICV, se encontraram para discutir o assunto, vulgo para concertação de posições.
E o resultado foi negativo, com cada parte fazendo finca pé das suas posições para grande satisfação do MPD e de Augusto Neves.
E para espanto geral o PAICV junta os seus votos aos do MPD para constituir a mesa da Assembleia, sendo Presidente da mesma a candidata proposta pelo MPD.
Espanto porque a história tem demonstrado até agora que, a haver conjugação com o MPD, ela tem acontecido com a UCID.
Se calhar nem o próprio MPD estaria à espera de tal junção. Ou quem sabe talvez não seja surpresa pois a política cabo-verdiana tem razões que a própria razão desconhece.
Mas mais que o facto ser estranho em si mesmo, as justificações pós voto é que naturalmente causam alguma perplexidade.
Uma coisa clara é que, o que quer que a UCID e o PAICV desejem, isso só pode ser possível com votos mútuos. Mais exactamente, o lugar de Presidente para um ou para outro.
A UCID argumentou ter tido mais votos para a Assembleia Municipal, o que sendo facto, não foi aceite pelo PAICV, que trouxe para a discussão os votos obtidos na Câmara.
Tal posição configura-se desajustada à matéria em discussão, a saber, cargos para a Assembleia Municipal e onde se deveriam contar os votos e os eleitos nela.
Negando a Presidência do órgão à UCID natural que esta rejeitasse a pretensão do PAICV a ser Presidente do órgão.
Nesse tira teimas o PAICV surge junto ao MPD, anuindo em conceder-lhe a sua desejada Presidência da Assembleia Municipal.
No campo estrito dos factos o PAICV parece ter preferido favorecer o seu adversário, o MPD. Parece preferir discutir o campeonato dos segundos, onde afirma que “não poderia se subalternizar perante a UCID” (Adilson Graça dixit no MIndelinsite).
O que se estranha no acontecido são as narrativas que posteriormente foram apresentadas para justificar tal posicionamento.
A princípio o silêncio, quase a dizer, não se passou nada, tudo normal.
Depois justificações avulsas que demonstravam uma evidente falta de razões objetivas.
A primeira, de que a UCID não quis negociar (Nelson Faria dixit). Mas, tendo o PAICV “acabado por ficar” com os cargos de Vice-Presidente e Secretário da Mesa, a pergunta que fica, é se não poderia obter os mesmos cargos com o apoio da UCID, concedendo-lhe a Presidência da Assembleia Municipal.
Depois, com o crescendo de estupefação e de críticas apareceu a tese da viabilização da MESA. Acordo não, mas viabilização da mesa da Assembleia Municipal.
O PAICV não viabilizou a Mesa proposta pela UCID, onde tinha os restantes dois lugares na MESA porque não aceitou que ele ficasse com a Presidência.
Mas resolveu viabilizar a lista com os mesmos cargos para si, mas com o candidato do MPD a Presidente.
Ninguém esclareceu até a presente de quem foi a autoria da iniciativa da formulação da lista, se foi o MPD quem convidou ou se foi o PAICV a convidar o MPD.
Mas o maior equívoco foi a narrativa de, que procedendo como procedeu, o PAICV estaria respeitando os resultados eleitorais (citando Nelson Faria).
Mas a interrogação que fica é se essa leitura, de junção com o MPD para a Mesa da AM, corresponderá aos desejos dos votantes no PAICV onde cabem os militantes e simpatizantes fixos do Partido, mas também os eleitores que circunstancialmente decidiram desta vez votar no mesmo.
Para elucidar esse ponto de vista, permito-me transcrever um excerto do Acórdão do Tribunal Constitucional n° 52/20 a fl. 32,”Não existe nem na Constituição nem na lei uma determinação no sentido da aplicação do sistema proporcional à eleição da mesa, tanto mais que se trata de um grémio específico que reclama pessoas com um determinado perfil e capazes de poderem configurar uma equipa de trabalho”.
Tal leitura dos resultados eleitorais segundo o PAICV é música para os ouvidos do MPD e de Augusto Neves. Estes, na sua narrativa, o eleitorado, ao lhes conceder a maior fatia do “bolo” eleitoral, entendem essa maioria como o eleitorado todo, que tudo o que se fizer nos órgãos municipais tem que vir deles, porque primeiros e únicos.
Aos outros eleitos, ainda que maioria nos órgãos respectivos, cabe o papel de aceitar os ditames dos “mais eleitos” do povo, esquecendo que os outros também são eleitos do povo como eles e que em democracia, realizadas eleições para eleger representes nos órgãos autárquicos, estes funcionam e decidem por maioria dos votos dos seus membros.
Vem mesmo a propósito citar o mesmo Acórdão, no seu ponto 10, a fls 34 que refere a dado trecho “Importante também, para se captar o alcance do princípio democrático, é que a Constituição reconhece o direito de oposição democrática (artigo 118) e a liberdade de constituição e atuação dos partidos políticos (artigo 57º) e estabelece a regra da maioria nas deliberações dos órgãos colegiais. Assim, em relação a este último aspeto determina no seu artigo 121º que «as deliberações dos órgãos colegiais são tomadas à pluralidade de votos, exceto nos casos em que a Constituição, a lei ou os respetivos regimentos disponham de forma diferente»».
Entrementes, aguardemos os próximos capítulos desta imprevista realidade autárquica em S. Vicente, com a atribuição de pelouros na CMSV.
Contudo de salientar que, na política como na vida, a ingenuidade costuma-se pagar caro.