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Congo, Ruanda e Burundi: Tribunal condena Bélgica por rapto de crianças mestiças

As cinco mulheres mestiças congolesas que desafiaram o governo belga e venceram no tribunal

A decisão do Tribunal de Relação da Bélgica já é considerada histórica. De 1948 a 1962 foram centenas de crianças mestiças retiradas às mães e entregues a instituições religiosas, no Congo e na Bélgica. As mães nunca mais souberam do seu paradeiro. Pela primeira vez, o país de Leopoldo II é condenado por crimes contra a Humanidade, durante a sua administração colonial do Congo, Ruanda e Burundi. Uma decisão que, segundo analistas, poderá abrir o caminho para outros processos e formas de justiça e de compensação.

A decisão do tribunal foi conhecida no passado mês de Dezembro e considerou que o ‘rapto sistemático’ de crianças mestiças das suas mães africanas nas então colónias do Congo Belga, do Burundi e do Ruanda, na região dos Grandes Lagos, foi um crime contra a Humanidade. 

De acordo com o jornal inglês The Guardian, o processo foi interposto por cinco mulheres que em criança foram retiradas às respectivas mães, entre 1948 e 1953, e que hoje vivem na Bélgica e em França. O tribunal condenou o Estado belga a pagar, a cada uma delas, uma indemnização de 50 mil euros pelos danos sofridos.

Esta política de raptos pela administração colonial belga afectou milhares de mestiços, filhos de mãe africana e pai belga, que eram vistos como uma ameaça à supremacia branca dos colonos. A trágica história, agora mais do conhecimento público por este processo e a sentença, revela como muitas destas crianças perderam totalmente o contacto com as progenitoras, depois de terem sido levadas e entregues a instituições religiosas, algumas a centenas de quilómetros de distância.

Os exemplos são vários, como François Milliex, presidente da Associação dos Mestiços da Bélgica, para quem esta sentença do tribunal “naturalmente que abre portas” para aqueles que desejam ser compensados pela separação forçada dos seus pais. A dor está sempre presente, quando conta que foi trazido para a Bélgica, em 1960, com 14 anos, e entregue a um albergue junto com os irmãos, depois de serem separados da família. O seu caso é particular, pois quer a sua mãe ruandesa, quer o pai belga estavam vivos e queriam criar os seus filhos. Para além do rapto, foi-lhe retirado a nacionalidade belga, ficando apátrida e impedido de deixar o país. Só recuperaria a nacionalidade já em adulto, tendo para isso de pagar o equivalente a um mês de salário, no processo e em burocracias. 

François conta como a maior parte dos mestiços trazidos para a Bélgica lamentam que o Estado nunca tenha proposto uma compensação pelo seu sofrimento. “Há pessoas que continuam a sofrer ainda hoje por esta separação, esta perda de identidade, por terem sido retirados das suas mães, perguntam por que é que os seus pais não os reconheceram, questões ainda no ar 70 anos depois. É uma dor que não sai do coração dos mestiços.” 

Mas, apesar da decisão inédita, há quem seja da opinião de que ainda há muito caminho pela frente e muita luta a travar. A advogada Michèle Hirsch, que representou as cinco mulheres, diz que a porta ficou aberta para mais processos idênticos, mas nada estará garantido à partida.

Pedido de desculpas e abertura de arquivos

Em 2019, o então primeiro ministro belga Charles Michel, pediu desculpas em nome do Estado pelos raptos de crianças mestiças. De seguida, deu instruções para que as vítimas tivessem acesso aos arquivos oficiais que os ajudariam a reencontrar as suas famílias de origem. Mas, por causa da má transcrição dos seus nomes, pelos serviços coloniais da época, muitas crianças perderam o contacto total com as suas famílias

Outros países, como a Austrália e o Canadá, aplicaram, aos povos originais, também a política de raptos semelhantes de mestiços, ao longo do século XX. Mas ao contrário destes, a Bélgica vem sistematicamente resistindo a todos os pedidos de compensação financeira.

O país herdou o Congo Belga, no início do século XX, depois deste território ter sido retirado da propriedade do rei Leopoldo II, que durante décadas permitiu que se instalasse no chamado ‘Estado Livre do Congo’, uma política de extermínio de trabalhadores nativos congoleses, na exploração da borracha e do marfim.

A Resolução Mestiço (Résolution Métis), um organismo estatal criado para facilitar o acesso aos arquivos, leva a cabo um estudo para determinar quantas pessoas foram afectadas por esta política. No entanto, declarou que não será possível dar uma resposta definitiva. 

Centenas de crianças mestiças terão sido levadas à força para a Bélgica entre 1960 e 1962, após o Congo, o Ruanda e o Burundi se terem tornado independentes. Mas, a grande maioria das que foram raptadas continuam na Africa central. A maioria parte das mães eram bastante novas, de 14 e 15 anos, quando engravidaram de colonos belgas, de 30, 40 e 50 anos. 

E muitas morreram sem nunca terem visto os seus filhos nem souberam para onde foram levados. E aquelas que desejam reencontrá-los, já com idade muito avançada, não têm meios e nem conseguem obter vistos para viajarem para a Bélgica para fazer testes ADN nos arquivos. 

ONGs como a African Futures Lab defendem que todos as pessoas mestiças que estiveram sob a guarda da Bélgica, durante o tempo colonial, deveriam ser contempladas com a nacionalidade belga, se assim o quiseram. 

Joaquim Arena

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