Por: Antónia Môsso
Pois é, venho por esta via informá-lo de que você está morto. Não, infelizmente não se trata de um equívoco. Percebo a sua admiração. Tristeza. De facto, é dramático. Teria ainda muitos planos pela frente, mas é um facto. Você deixou de viver.
Resista, por favor, à tentação de culpar a morte. Não a culpe! A morte, a única coisa que faz é apoderar-se de lugares que encontra vazios. Já faz o seu serviço há tanto tempo com toda a competência que na maioria dos casos a pessoa nem se apercebe que já não está cá. Que partiu.
Dá-lhe algum consolo saber que não é o único a estar morto? Que mais de metade da população da sua terra, também se ausentou da vida?
Talvez o conforte saber que é um sortudo. Um privilegiado. Pois, alguém teve o cuidado, a consideração de vir até aqui, no jornal, informá-lo. Coisa que não se irá passar com as restantes pessoas. Terão de desenrascar-se sozinhas. Coitadas!
Não se pode passar a alguém um atestado de vida, só porque a única pulsão de vida se resume a um par de coisas corriqueiras associadas à satisfação de necessidades básicas. Correr atrás de um emprego, ou lutar para o preservar. Ter casa própria, talvez uma viatura. Conforto material. Poder.
É vida o desenrascanço quotidiano para catar o pão? A improvisação de um teto para enfiar a cabeça? O depender da solidariedade alheia para não sucumbir à miséria e ao desespero?
Nem o hedonismo: festarolas, festivais de música, batucadas, carnavais, concursos de beleza, consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias psicoativas, atestam que esteja vivo.
Independentemente do nível de importância que possa atribuir a cada uma dessas coisas, viver, estar vivo- por ser um grande evento – não pode resumir-se a isso. A só isso. Lembre-se que somos humanos e que ocupamos o topo da hierarquia de existência. Precisamos de mais.
A presença de vida se manifesta pela capacidade de envolvimento com o que se passa à nossa volta. Estar conectado com a realidade. De ter afeto. Empatia. Dá-se pela multiplicação e intensidade do verbo sentir. Pensar. Faz-se pelo sentido crítico e busca incessante da verdade. E, principalmente, pelo movimento. A vida define-se pelo movimento. Pela ação.
Parece mais prudente apanhar o atalho do comodismo: habituar-se. Quem deseja o nosso bem, incentiva-nos a fazê-lo em vez de optar pelo arregaçar das mangas e lutar para melhorar o estado das coisas. E é por isso que anos após anos, os problemas permanecem os mesmos e vai havendo sempre espaço (disponibilidade) para acolher, com um encolher de ombros, os novos.
A habituação em determinados casos pode ser uma estratégia de preservação da vida (habitua-se normalmente para se adaptar a algo ou alguém). Mas também, pode ser a corda que aperta o pescoço, quando há uma excessiva disponibilidade para se habituar a tudo mesmo que seja mau, injusto, sem nexo ou destrutivo.
Habituar-se à imoralidade, de forma voluntária, para preservar a vida e evitar conflitos, também é morrer. Talvez até a forma mais reles de morte. Morre-se na mesma só que em pequenas doses de desistência de valores fundamentais. Paulatinamente vai-se comprimindo, encolhendo até ser-se esmagado como um inseto pelo pé do abusador.
Habitua-se à inobservância das regras e das leis. À corrupção. À perda de direitos laborais. Habitua-se à repressão e ao medo. Habitua-se à disfuncionalidade dos serviços públicos. Habitua-se à cunha. Ao assédio sexual. À fuga ao fisco e à impunidade. Habitua-se à desconfiança cúmplice do sistema: dos políticos, polícias, cuidados de saúde, da justiça. Habitua-se à compra/ venda de votos. Aos animais abandonados nas ruas. A tropeçar no lixo. Habitua-se à poluição sonora e à privação do sono. Habitua-se à miséria económica e moral. À indignidade e à fome. À indignidade da fome. E a chamar a fome por outros nomes.
Então, não se habitua? Somos a prova viva disso. E consideramo-nos seres especiais, resilientes, por isso. Mas será isso vida? Levará o país a algum lado? Estamos bem? Somos felizes?
Venho por esta via informá-lo de que você está morto. Mas anima-se, não é o único. Na melhor das hipóteses fará essa longa viagem com mais de metade da população que “vive” no país. Tem todo o direito de querer saber a causa do óbito: habituação ao absurdo seguida de uma fulminante passividade. Parecia ser um remédio, mas não. Mata.
É doença que entra devagarinho, mas é traiçoeira, arrebenta com todo o sistema. Quando se der conta estará num estado vegetativo. Paralisado. Deixou de pensar, de questionar, de se indignar e de agir no sentido de mudar algo. Só lhe restará força para dizer: “Deus no comando”. “Deus é pai”.
Deus está farto de si, dos seus impulsos egoístas e da desresponsabilização. E ainda o sobrecarrega como se fosse o seu único filho a merecer cuidados.
O país está farto de si, não se cumpriu enquanto cidadão.
O habituar-se à mediocridade, como estratégia para se proteger de algo ainda pior, é um embuste porque não oferece, como contrapartida, uma vida positiva, digna e de qualidade para a maioria da população. E a prova disso é a existência de níveis incomportáveis de desesperança, frustração, insatisfação na nossa sociedade. De pessoas com a saúde mental ameaçada e de baixas expetativas em relação ao país e ao seu futuro. De jovens sem capacidade de sonhar, ou forçados a emigrar para poder fazê-lo.
Ao habituar-se à anormalidade torna-se num cidadão dócil. Passivo. Alienado. Passa a ser desconsiderado pelos representantes políticos já que lhes deu o chicote e ofereceu as costas. Você, morto no exercício da cidadania, é fruto de uma fabricação histórica, social e política que dá muito jeito a uma minoria no poder. Um sonho de consumo para o poder político autoritário, nepotista e predador.
Venho por esta via informá-lo de que você está morto. Respira. Fala. Trabalha. Sente. Interage, mas não se deixe iludir. A vida ausentou-se de si há muito tempo.
Representam estandartes da vida todos os que realmente se preocupam com o bem comum. Ativistas, sindicatos, associações ambientalistas e de defesa do consumidor, movimentos cívicos, e outras vozes incómodas. Gente que, movida por ideais, aponta o dedo e tenta melhorar a realidade. Possuí um propósito. E luta em prol de uma terra melhor para todos – humanos e não humanos. No entanto, sentem-se sós e exaustas. Chamam-no. Mas, como de costume, diz estar com dor de barriga.
Venho por esta via informá-lo de que se você está desagradado com a sua vida e com o país que também é seu, e está parado, é porque está morto. Agora, não sei o que pretende fazer com essa “descoberta”, mas despache-se. Mexa-se. Ou então deixe-se estar quieto. Finja que não é consigo, Faça de morto. Saiba que o abuso de poder, e o poder de abusos são imparáveis. E revelam-se cada vez mais hipócritas e despudorados. É só reparar nos discursos e condutas dos representantes políticos. Já nem se dão ao trabalho de esconder as unhas…
Com o seu recuo estratégico, o poder demagógico ganhou balanço e avança como um bulldozer demolindo os cidadãos e as instituições democráticas. E, fique desde já a saber, que nem a sua ossada estará a salvo.
Não se vitimize, assuma a sua escolha: a morbidez.
Machado de Assis, renomado escritor brasileiro, de forma brilhante dedicou a sua obra “Memórias póstumas de Brás Cubas” ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver. E foi um homem que investiu na vida.
Investir na morte, só me parece rentável para as agências funerárias. Mas isso sou eu que digo. Vendo o país atraído pelo abismo e um povo empenhado em fazer-se de morto, posso estar redondamente enganada.
Mindelo, 12/01/2025