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Preço potencialmente elevado de política monetária errática do Banco de Cabo Verde

Por: João Serra*

De uma forma simplificada, pode dizer-se que a política monetária é o conjunto de medidas que o banco central (BC) toma, no exercício do seu mandato, para influenciar o custo de pedir dinheiro emprestado aos bancos comerciais, bem como a quantidade de dinheiro que existe na economia. 

Tais decisões visam garantir a estabilidade de preços, ou seja, manter uma inflação estável e previsível, evitando uma subida generalizada de preços que castiga o poder de compra das famílias e afeta negativamente a economia.

Nos países onde o mercado de capitais funciona com eficácia, existe uma relação entre a inflação e as taxas de juro. Neste contexto, para garantir a estabilidade de preços, a decisão mais impactante do BC é geralmente a fixação das designadas taxas de juro oficiais e de referência (taxa diretora, taxa de facilidade permanente de depósito e taxa de facilidade permanente de cedência de liquidez) sobre a liquidez que disponibiliza aos bancos comerciais.

No nosso país, é o Banco de Cabo Verde (BCV) que, nos termos legais, tem por atribuição principal a manutenção da estabilidade dos preços. O BCV deve ainda executar de forma autónoma a política monetária e cambial, bem assim, deter e gerir as reservas de câmbio oficiais de Cabo Verde.

Pelo que compete ao BCV a escolha dos instrumentos de política monetária, designadamente a forma e o custo de intervenção nos mercados monetário e cambial para melhor alcançar os objetivos pretendidos.

E esses instrumentos foram aperfeiçoados ao longo do tempo. Por exemplo, em junho de 2017 o BCV implementou um pacote abrangente de medidas de política monetária, abarcando a redução das taxas de referência para mínimos históricos e a implementação de um conjunto de medidas para aprimorar o mecanismo de transmissão monetária, alterando de forma profunda o seu quadro operacional de política monetária.

Desse conjunto de medidas, então adotadas pelo BCV, destaco as seguintes novidades:

1) A absorção do excesso de liquidez bancária, pelo valor apurado na previsão de liquidez de curto e médio prazo, eliminando o limite máximo até então existente, com vista ao aperfeiçoamento da transmissão monetária, não obstante o aumento dos custos de política monetária nas contas do BCV;

2) A implementação de intervenções de Títulos de Regularização Monetária por via de leilões de taxa fixa, ao contrário de leilões de taxa variável, com colocação à taxa diretora do BCV, com vista a restaurar o desígnio da taxa diretora, a eficiência do canal de juros e a credibilidade da política monetária; e

3) A eliminação do limite máximo fixado à banca para o recurso às facilidades permanentes de cedência de liquidez.

Com a crise provocada pela pandemia de Covid-19, o BCV, entre outras medidas, reduziu as suas taxas de juro de referência para níveis praticamente simbólicos. As medidas então adotadas tinham um caráter temporário, pelo que deveriam ser normalizadas logo que as circunstâncias o permitissem. Porém, tal não aconteceu, salvo uma ou outra medida sem, praticamente, qualquer impacto no contexto pós-pandémico.

Entretanto, a invasão da Ucrânia pela Rússia fez com que disparassem os preços dos produtos energéticos e dos produtos alimentares, o que provocou uma subida acentuada da inflação também em Cabo Verde, tendo atingido cerca de 8% em 2022.

E o BCV em vez de tentar conter a inflação galopante através de subidas regulares e / ou robustas das suas taxas de juro de referência –  à semelhança do que fez, por exemplo, o Banco Central Europeu (BCE) –, manteve as taxas inalteradas em 2022. Já em 2023, procedeu a duas alterações, num total de 100 pontos-base (pb): a primeira em maio, passando a taxa diretora de 0,25 para 1,0 %, e a segunda em novembro, tendo a taxa diretora sido aumentada de 1,0% para 1,25%. Entretanto, o BCE já tinha feito oito subidas das suas taxas de juro entre julho de 2022 e setembro de 2023, passando a taxa diretora de 0,00% para 4,5%, uma subida em 450 pb que compara com os 100 pb do BCV.

Em maio de 2024, quando o BCE já tinha sinalizado que iria reduzir a sua taxa de juro diretora em 25 pb (o que realmente veio a acontecer em junho), o BCV decidiu, em contramão, aumentar a sua taxa diretora em 25 pb, passando de 1,25 para 1,50%, que compara com a taxa diretora do BCE de 4,25% em junho de 2024.

O facto de o BCV não ter, de alguma forma, acompanhado as subidas das taxas de juro do BCE para combater a inflação elevada, fez com que aumentasse significativamente o diferencial entre as taxas de juro nas operações passivas (depósitos nos bancos comerciais) praticadas em Cabo Verde e nos países da Zona Euro, em especial Portugal. Isso, associado à livre circulação de capitais, levou às chamadas “operações de arbitragem de recursos”, isto é, a saída de divisas do país para serem aplicadas no exterior, na medida em que lá fora as taxas de juro são muito superiores às praticadas em Cabo Verde.

Em consequência, o stock das reservas externas do país, que em 2021 permitia financiar 7,5 meses das importações de bens e serviços, em outubro de 2024 já só permitia financiar 5,6 meses das importações projetadas para esse ano. Isso levou o BCV a proceder, num curto espaço de tempo, a duas subidas nas suas taxas de juro, mesmo face à previsão da taxa de inflação em torno de 1%, tanto em 2024 quanto em 2025. Na primeira subida, ocorrida no dia 31 de outubro de 2024, o BCV aumentou a sua taxa diretora em 25 pb, passando de 1,50% para 1,75%. Já na segunda subida, ocorrida no dia 19 de dezembro de 2024, a taxa diretora passou de 1,75% para 2,25%, um aumento em 50 pb. E isso enquanto o BCE reduzira uma semana antes (12 de dezembro) a taxa diretora em 25 pb, de 3,40% para 3,15%. 

O BCV cometeu um erro grave ao não normalizar os seus instrumentos de intervenção monetária quando o devia fazer, eventualmente por considerações de natureza política, o que também não deixa de ser grave para uma instituição supostamente independente. E procura agora mitigar o risco que a saída massiva de divisas do país representa para o regime do “peg” fixo da moeda nacional face ao euro, com medidas cujo impacto não vai inverter a situação. 

Na verdade, estudos empíricos sobre a transmissão da política monetária em Cabo Verde demonstraram que subidas nas taxas de juro de referência, na dimensão equivalente às quatro já feitas pelo BCV desde novembro de 2023, tiveram impactos marginais nas taxas de juro bancárias nas operações passivas (depósitos), mas relativamente significativos nas operações ativas, mormente nos créditos, cujas taxas de juro cobradas pelos bancos comerciais estejam, de alguma forma, indexadas às taxas de juro do BCV. 

Ou seja, experiências do passado indicam que com as recentes medidas de subida das taxas de juro do BCV não vai haver aumento nas taxas de juro nos depósitos, de forma a fazer com que haja canalização das poupanças das famílias, dos emigrantes e, eventualmente, das empresas para aplicações no país.

Outrossim, no contexto de existência de excesso estrutural de liquidez no setor bancário, os bancos praticamente não transacionam dinheiro entre si e tampouco lhes interessa aplicá-los “overnigh” no BCV, na medida em que conseguem rendimentos maiores aplicando o excesso de liquidez existente lá fora. Por exemplo, em Portugal a taxa de juro média dos depósitos a prazo rondava 3% em 2024, que compara com a taxa diretora do BCV de 2% e a taxa permanente de absorção de liquidez de 1,7%.

Por causa da política monetária errática do BCV, Cabo Verde está a correr sérios riscos de ter perdas consideráveis no seu stock de reservas externas, comprometendo o regime cambial vigente. Além disso, os aumentos das taxas de juro de referência vão encarecer os novos créditos bancários e os já existentes com taxas variáveis, deteriorando ainda mais o poder de compra das famílias e prejudicando a atividade das empresas.

Continua…

Praia, 11 de janeiro de 2025

*Doutorado em Economia

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