Depois de vinte anos a misturar os géneros musicais de Cabo Verde com o jazz, a cantora Carmen Souza recupera a presença inglesa em São Vicente para compor o seu mais novo disco. Port’Inglês como se chama, recupera, nas suas letras e ritmos, o tempo do carvão e figuras históricas, como o pirata Francis Drake e Charles Darwin, naturalista, numa viagem de descoberta pela história colonial das ilhas.
O último disco de Carmen Souza faz uma viagem pela história e pelas influências inglesas em Cabo Verde, mais precisamente em São Vicente, a começar pelas palavras deste idioma que entraram no crioulo local e a memória histórica desta conexão britânica nas ilhas. Se o próprio título, Port’Inglês, como também foi conhecida a Vila do Maio, é expressão dessa influência, palavras como Oriop (Hurry-up!) e referências a figuras como o pirata Francis Drake (a faixa ‘Francis Drum’) ou Charles Darwin (‘St. Jago’), que refere as andanças do jovem naturalista pela ilha de Santiago, espelham essa abordagem histórico-musical do novo conceito musical, do útimo trabalho desta cantora nascida em Almada, Portugal, filha de pais cabo-verdianos.
A história do disco remonta aos dias da pandemia da Covid 19, como ela explica ao telefone para o A NAÇÃO, quando decidiu fazer um mestrado em etnomusicologia, em Londres. Nas pesquisas para a sua tese, encontrou muita informação, inclusive ligações familiares ao tema, como a avô, natural de Santo Antão, que havia trabalhado para uma das companhias carvoeiras inglesas de São Vicente.
“E daí veio a ideia de construir músicas de acordo com as histórias que ia descobrindo. A ideia era encontrar temas dessa época como que eu pudesse fazer arranjos e trazer para a minha realidade musical.” Para Carmen, a viver em Londres há dezassete anos, a presença inglesa até aí era-lhe completamente desconhecida, “mas tornou-se ponte para a minha história. Descobri a relação de B. Leza e os ingleses, o meu avô, as companhias de shipping e de carvão, e as histórias foram dando corpo ao conceito.”
O companheiro da sua carreira musical, o baixista Theo Pascal, ficou muito curioso com todas estas histórias, como ela explica. “Normalmente, a música parte de ambos e uma troca de histórias e da criação da música veio por associação. Theo é um grande conhecedor da música de Cabo Verde e lusófona, sentiu-se inspirado para fazer o disco e puxou por outras sonoridades, numa ponte entre a música inglesa e a música de cabo Verde, a morna e o funaná, sendo a primeira o estilo mais expressivo de Cabo Verde.”
E aqui, o funaná também jogou outro papel, que foi “descolonizar as mentes”, diz Carmen Souza, já que este género “também teve o papel de música de intervenção no passado e quisemos mostrar esse lado da resistência e da identidade, da descolonização das mentes”.
Para já, após o lançamento no passado mês de Setembro, para além de bem recebido, segundo a entrevistada do A NAÇÃO, o disco tem atraído alguma curiosidade à volta do seu conceito. “Acabei por enviar a minha tese de mestrado a vários jornalistas que me pediram, leram-na e acharam muito interessante esta história da presença inglesa e a forma como ela teve impacto na ilha de São Vicente e nos seus costumes.”
Horace Silver e a descoberta do jazz
Ao contrário de outras cantoras nascidas na diáspora, Carmen Souza não seguiu o caminho da música cabo-verdiana. A adesão ao jazz está ligada ao seu encontro com o baixista português Theo Pascal, que ela considera o seu mentor musical.
“Quando o conheci ele já era um músico muito experiente e tinha uma enorme colecção de discos de jazz. Disse-me para eu ir ouvindo para perceber e se me identificava para desenvolver mais o meu conhecimento musical. E logo achei tudo aquilo muito interessante, músicos como Horace Silver, Thelonius Monk, Billy Holliday, Sara Vaughn, com uma voz própria.”
E, no caso do pianista Horace Silver, pai do hard bop, e filho de um emigrante natural do Maio, o caso seria mais profundo: “Ele também influenciou-me a criar uma voz própria, a harmonização, a improvisação, ajudou-me a abrir caminhos para eu estar centrada naquilo que é a identificação com Cabo Verde, a lusofonia, Portugal, mas através do jazz poder voar por outros caminhos.”
Carmen Souza descobre Horace Silver na época em que estava também a misturar o jazz com o crioulo. “Foi revelador e inspirador, já ter havido alguém que também fizera isso, em músicas como Song for my father, Cape-verdean Blues, Señor Blues, um espólio e uma herança fantástica.”
A cantora gravaria um disco em tributo ao pianista, chamado Silver Messengers, colocando letras em crioulo nalguns dos clássicos de Horace Silver. Assim como Didy Bridgewater já tinha feito, numa gravação a dois. “Essas músicas, com as minhas letras, é como se fossem também parte de mim. E se não as toco nos meus concertos, o público cobra-me no final, porque já as associam ao meu repertório. Eu acho que isto é uma passagem do legado de Horace muito interessante.”
De Almada para o mundo
Nascida na Margem Sul da grande Lisboa, em Almada, Carmen Souza cresceu rodeada pela cultura cabo-verdiana. “Desde pequena que vivi nessa ‘pequena ilha’ crioula de Almada, com a música, a comida, o crioulo, como se vivêssemos num pequeno Cabo Verde.”
Aos nove anos, viaja com a mãe pela primeira vez de férias a Cabo Verde, para São Vicente e Santo Antão (Ribeira da Torre). Só voltará já cantora profissional, muitos anos depois.
Em 2024 esteve na primeira edição do Kriol Jazz do Sal, e num concerto em Paris, ao lado de Lucibela e de Mário Lúcio. “Senti muito carinho pela minha música, muita admiração por parte dos músicos e fico contente por reconhecerem ao meu trabalho.”
Para já, não há perspectiva de apresentar o novo disco em Cabo Verde.
E se 2024, a sua banda formada por Theo Pascal, no baixo, Jonathan Idiagbonya, piano, e Elis Kacomanolis, na bateria, os levou a mais de 23 salas e festivais, em Portugal, Espanha, Áustria, Alemanha, Reino Unido, França, para 2025 estão agendados para já 10 concertos e a apresentação de Port’Inglês, em Lisboa, no dia 31 de Janeiro.
Trata-se do 11º disco de Carmen Souza, que se tornou presença habitual em jornais e revistas do jazz internacionais e no circuito da world music. A mistura de géneros, como o funaná, a coladeira, a morna, com o jazz tornou-se a sua marca musical distintiva. Assim como o jazz-rock fusão, que a levou a conquistar um espaço no circuito musical internacional como poucos artistas.
“Tem sido fantástico. Costumo dizer que praticamente estamos em tournée há vinte anos, não é fácil. Mas as pessoas continuam a chamar-nos para concertos, trabalhamos para o mundo inteiro e é gratificante ver como o público continua a encher as salas.”
E Cabo Verde viaja também com ela, como explica, na componente que empresta ao jazz. “Essa componente crioula é muito importante, porque estou a expressar aquilo que são as minhas raízes, mas de maneira diferente, e que levou-nos a criar uma sonoridade distinta, que é nossa. É fantástico ver como ao fim de onze discos, ainda é possível descobrir coisas novas e ficamos muito felizes com isto.”
Discografia
2005 – Ess e Nha Cabo Verde
2008 – Verdade (Galileo Music)
2010 – Protegid (Galileo Music)
2011 – Carmen Souza Duo feat Theo Pas’cal London Acoustic set (Galileo Music)
2012 – Kachupada (Galileo Music)
2013 – Live at Lagny Jazz Festival (Galileo Music)
2015 – Carmen Souza & Theo Pascal – Epistola (Galileo Music)
2017 – Creology (Galileo Music)
2019 – The Silver Messengers (Galileo Music)
2022 – Interconnectedness (Galileo Music)
2024 – Port’Inglês (Galileo Music)
Joaquim Arena