A abertura de um processo de investigação pela Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o pagamento de salários à Primeira- -dama e o vazamento de dados confidenciais levanta, no entender do académico Eledilson Gonçalves, dúvidas sobre a admissibilidade de provas obtidas de forma ilícita. Para esse mestre em Direito e professor universitário, “a justiça tem os seus caminhos para a descoberta da verdade material, e para isso não vale tudo”.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou esta semana, em comunicado, que determinou a abertura de um processo de investigação relacionado ao pagamento de salários pela Presidência da República à Primeira-dama (PD), bem como à divulgação ilegal de dados confidenciais sobre a ordem de pagamento.
A decisão surge meses depois à publicação do Relatório de Auditoria Financeira e de Conformidade à Presidência da República, abrangendo o período de Janeiro de 2021 a Janeiro de 2024, e da divulgação de informações de foro pessoal, da cidadã Débora Katiza, nas redes sociais e na comunicação social, ao que tudo, a partir de uma fuga informática.
Abuso de poder e devassa pessoal
Conforme o MP, o relatório aponta indícios de práticas ilícitas que podem configurar crimes como abuso de poder, participação ilícita em negócios, peculato e recebimento indevido de vantagens, previstos no Código Penal. Com base nos artigos 58.º, 59.º e 301.º do Código de Processo Penal, foi determinada a abertura de instrução para apurar os fatos e responsabilizar os envolvidos.
Paralelamente, diz o MP, um funcionário da Presidência da República, cuja identificação não foi revelada, foi acusado de desvio de dados, conforme o artigo 64.º do Regime Jurídico Geral de Proteção de Dados Pessoais, após investigação sobre a divulgação de informações sigilosas.
A instrução foi concluída no dia 19 de Novembro de 2024, e o MP já deduziu acusação e requereu julgamento para a efectivação da responsabilidade criminal. Todos os intervenientes foram notificados, e os autos seguem em tramitação legal.
Implicações e consequências
A polémica começou em Dezembro de 2023, após a circulação nas redes sociais de informações indicando que Débora Carvalho recebia 310.606 escudos mensais, valor equivalente ao salário que tinha na CV-Móvel antes de assumir o papel de PD.
Embora a pessoa que divulgou os dados deva, segundo a lei vigente, ser condenada por cometer um crime, o jurista e professor universitário Eledilson Gonçalves aponta, contudo, para um contraste moral e social, a seu ver, importante: “Como podemos aceitar que uma pessoa, ao denunciar um crime, possa ser criminalizada por isso? Afinal, ela revelou uma irregularidade, mas ao mesmo tempo violou a lei ao fazer isso de forma ilícita”.
Nesse sentido, Gonçalves destaca a necessidade de proteger os denunciantes, que muitas vezes acabam por se tornar alvos de retaliação, incluindo a incriminação, por suas acções. Para este académico, a implementação de uma legislação de proteção aos denunciantes, como o Estatuto dos Denunciantes adotado em países como Portugal, é fundamental para garantir a segurança jurídica dessas pessoas, que denunciam crimes sem correr o risco de punição.
“Isso não apenas protegeria os denunciantes, mas também ajudaria a combater crimes dentro das instituições e corporações, oferecendo-lhes segurança jurídica para realizar denúncias sem medo de retaliação”, defendeu.
Por fim, Gonçalves coloca uma dúvida sobre o uso de provas obtidas de forma ilícita: “Até que ponto podemos usar provas obtidas por particulares através de crimes para condenar alguém?”, questiona, destacando o dilema entre a busca pela verdade e o respeito às normas jurídicas.
Licença especial
Relativamente ao salário da Primeira-dama, a Presidência da República alegou na altura, quando o caso saltou para a ribalta pública, que Débora Carvalho, desde a investidura do Presidente José Maria Neves, dedicava-se exclusivamente ao cargo de PD, encontrando-se em licença especial do seu quadro de origem e recebendo o mesmo estatuto salarial, sem assinar contrato com a Presidência.
No entanto, a IGF e depois o Tribunal de Contas concluíram que não há suporte legal para tal pagamento, considerando irregular o montante transferido à PD e determinando a reposição do valor pago como salário. A controvérsia gerou reacções de partidos políticos e pedidos de fiscalização, incluindo um apelo do MpD ao Tribunal de Contas para investigar a utilização de recursos públicos no contexto.
Processo conduzido com “boa-fé”
A Presidência, por sua vez, defendeu que todo o processo foi conduzido com boa-fé, transparência e em concertação com o Governo. Em Maio de 2022, propôs um anteprojeto de Lei Orgânica que regularia questões administrativas relacionadas à figura da PD, mas o documento não avançou.
Fora isso, a IGF também apontou irregularidades no pagamento de salários a Marisa Morais, conselheira jurídica do Presidente, recomendando a devolução de 2.259.480 escudos, recebidos durante 20 meses.
Diante da conclusão da IGF, o Presidente José Maria Neves reafirmou o compromisso com a transparência e garantiu que o montante já foi devolvido na íntegra aos cofres do Estado, antes mesmo do pronunciamento final dos tribunais.
Geremias S. Furtado
Publicado na Edição 902 do Jornal A Nação, de 12 de Dezembro de 2024