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Um tributo à Lilica Boal na luta pela educação pública em Cabo Verde

Por: Alexssandro Robalo

Para mim, a Escola-Piloto foi uma escola para todos nós que passámos por lá. Aprendi muito mais com os alunos da Escola-Piloto do que nos bancos da faculdade. Lilica Boal (1998)

O ano de 2024 ficará registrado na história como sendo um ano de feitos memoráveis! Trata-se do ano de comemoração do centenário de nascimento daquele que é um dos maiores nomes associados à mudança revolucionária no século XX: Amílcar Lopes Cabral. O centenário desta figura ímpar da história Africana foi celebrado um pouco por todo mundo, apesar da bakandesa e  tolobaskaria institucionais dos Estados na sua terra natal (Guiné-Bissau) e na terra ancestral (Cabo Verde).

2024 ficará também na memória coletiva e nas  páginas  da história como o ano da passagem física de uma personalidade que deixou marcas indeléveis no processo da revolução em África: Maria da Luz Freire de Andrade, mais conhecida por Lilica Boal (1934-2024). A trajetória de vida e militância revolucionária de Lilica Boal ficou marcada por um engajamento político, educacional e afetivo com a África sonhada para a posteridade. O seu contributo em prol da libertação da África e dos Africanos é imenso!

Lilica Boal, natural do Tarrafal de Santiago, nasceu numa família que naquela altura, nos anos de 1930, era tida como uma família com “uma vida bastante folgada”, porquanto os seus progenitores eram comerciantes. Num período em que a pobreza e a miséria abundavam nestas ilhas, Boal teve o privilégio de estudar tanto na sua ilha natal como, posteriormente, em São Vicente, situação reservada quase exclusivamente às pessoas com alguma posse. Não obstante, é durante a formação académica em Portugal que a sua consciência política iria formar-se, muito por conta do papel desempenhado pela Casa dos Estudantes do Império. Foi, portanto, nesta ocasião que passaria a engajar-se junto de outros Africanos provenientes de países colonizados por Portugal. 

Lilica Boal fez parte de um grupo constituído por mais de 50 estudantes, que a partir de Portugal decidiram fugir, em direção a alguns países Africanos, para se engajarem na luta anticolonial. Toda a “odisseia” daquela fuga constitui um momento histórico fascinante e inspirador, por se tratar de um contexto em que a coragem, a determinação e o amor revolucionários se encontraram no mesmo espaço e tempo!

De todo o seu compromisso com a luta de libertação – na Guiné Bissau e em Cabo Verde – é na senda educacional que a Lilica Boal deixaria para sempre o seu nome gravado, como uma educadora de enorme envergadura, mas também como líder de um processo extraordinário de descolonização da educação levada a cabo a partir de Conacri e nas zonas libertadas da Guiné-Bissau. Aliás, o nome da Lilica Boal quase se confunde com o de “Escola-Piloto”.    

O trajeto de Lilica Boal, do momento da “fuga” de Portugal ao engajamento total nas fileiras do PAIGC, constitui um fato histórico de relevância, sendo que o seu registro e partilha poderiam inspirar as novas gerações a favor das lutas de libertação dos nossos dias. A análise minuciosa dos seus depoimentos evidencia a sua convicção em relação ao processo libertador, assim como uma alegria inabalável quando o assunto é a Escola-Piloto e o seu lugar no quadro da construção de um “novo ser Africano”.

Lilica Boal inspira as lutas atuais

Em 2019, Lilica recebeu-me na sua casa, com a gentileza que a caracterizava, através de uma conversa amável e instigante, pude conhecer a mulher por quem há muito nutria um enorme respeito e admiração. Aquela tarde foi uma espécie de bálsamo para minha existência enquanto ser humano, muito por conta daquilo que ela, Lilica, representava para mim. Aquela prazerosa e longa conversa deixou-me com a certeza de que realmente nasceu no solo caboverdiano uma pessoa que entregou quase toda a sua juventude ao serviço da construção de um futuro marcado pela dignidade, justiça e auto-determinação. Os episódios ocorridos na Escola-Piloto, as fotografias bastante estimadas, as palavras e ações de Amílcar Cabral, os relatos dos antigos pupilos da Escola-Piloto, deixaram evidente que, infelizmente, Cabo Verde se encontrava bastante desconectada da batalha pela preservação e disseminação de memórias coletivas.

Contudo, o que eu não imaginava naquele momento é que poucos meses depois estaria trabalhando como educador numa escola pública e que aquela seria a nossa última conversa. Levo comigo, para sempre, esta linda memória da conversa com uma gigante! A nossa  primeira e última conversa!

Os anos seguintes mostraram-me que, apesar de se reconhecer o salto dado na matéria da educação, um longo caminho terá de ser feito, se se quer uma educação verdadeiramente de qualidade. Como a própria Lilica disse, ao Expresso das Ilhas, três meses antes da sua morte, “Cabo Verde, hoje, é muito diferente daquilo que foi, mas ainda há muito a ser feito. Essa luta continua”. Diria eu, essa luta além continuar, é, hoje , bastante urgente, tomando como foco a questão da educação. 

Refiro-me à imprescindibilidade e urgência desta luta na medida em que a degradação da educação pública em curso é algo realmente preocupante. Esta  degradação, manifestada nos últimos anos, vem ganhando, gradualmente, novos contornos. Todavia, os dirigentes do país têm optado por uma postura comprometida com a máquina da propaganda e manipulação. Enquanto isso, a realidade concreta movimenta-se perversamente no sentido inverso:  falta contínua das condições nas escolas  e a deterioração do estado mental e psíquico dos profissionais da educação. Negar essa cruel realidade é “tapar o Sol com a mão”!

Fora da escola pública, Lilica Boal sequer imaginava que a educação estaria manifestando inúmeros sinais de cansaço e, quiçá, esgotamento. Muito menos, poderia ela imaginar que os ataques neoliberais, tão nocivos aos serviços públicos básicos e constitucionalmente salvaguardados, teriam como “ponta de lança” os governantes deste país. 

A degradação em curso atingiu um nível tal que, enquanto escrevo estas linhas, mais de 200 professores caboverdianos enfrentam um processo disciplinar arbitrário, injusto, desproporcional e desprovido de qualquer sustento legal. Processos esses que foram orquestrados com a única finalidade de silenciar a minoria corajosa e anular qualquer ato de insubordinação e de protesto por parte da maioria oprimida e explorada.

Ademais, enquanto escrevo, muitos professores dão conta de descontos efetuados nos seus míseros salários, sem falar de alguns deles já suspensos, longe das salas de aula e sem seu salário. Portanto, a repressão àqueles que ousaram dizer ao poder e ao povo que o estado da educação pública é patológico tem um rosto financeiro! Este quadro “clínico” diz muito mais sobre o país que temos neste momento e a sua cultura (anti) democrática do que a educação pública.

Na esteira do legado da Lilica Boal, mulher convicta do papel da educação na construção do presente e futuro, mesmo poucos, estamos confiantes de que a luta continua e a resistência será permanente!

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