Do tempo em que Lilica via passar os camiões tapados com lonas, para não verem os prisioneiros que chegavam à Colónia Penal do Tarrafal, até ao seu último suspiro, na passada quarta-feira, dia 6, decorreu uma vida plena e dedicada à luta pela libertação da Guiné e Cabo Verde e à construção destes dois Estados. Sobretudo na formação de crianças e adolescentes, futuros quadros destes dois países, na hoje lendária Escola Piloto de Conakry. Um projecto que marcaria a vida de centena e meia de alunos e dos muitos professores que por lá passaram.
Os pais de Lilica – nho Papacho e nha Beba – eram comerciantes no Tarrafal e como não havia na época hotel, os familiares que chegavam a Cabo Verde para visitar os presos políticos (portugueses) ficavam em casa do casal de comerciantes. Mas mal os presos chegavam ao Campo, presidio, ou Campo de Concentração, caía um silêncio tumular sobre a sua vida.
Lilica era ainda criança, mas marcou-lhe a imagem de uma mãe portuguesa, recém chegada da Metrópole com o marido que chorava um filho de 16 anos que estava preso. Um nome, Guilherme da Costa Carvalho, que ela nunca esqueceu mesmo quando foi estudar para o Liceu de São Vicente e depois para Portugal, onde prosseguiu os estudos liceais. A família de Guilherme, militante comunista, visitou-o várias vezes, ficando sempre em casa de Lalacho e Beba. Daqui nasceu uma relação de amizade com a mãe do jovem prisioneiro e Lilica recorda como ela sofria bastante.
E muitos anos depois, quando já era a coordenadora da escola-piloto do PAIGC, em Conakry, observando os alunos mais velhos, de quando em quando vinha-lhe à mente o jovem Guilherme, perguntando qual teria sido o seu destino, assim como o dos pais desse jovem. O que não terão feito para chegar a Cabo Verde para verem o filho encarcerado.
Lilica Boal morreu no passado sábado, aos 90 anos. E de todos os seus contributos para a construção do futuro da Guiné e de Cabo Verde, a escola-piloto, fundada após o Congresso de Cassacá, em 1965, por Amílcar Cabral, terá sido o mais importante. Assim pensava e disse-o em diversas entrevistas. De certa maneira, o seu local de nascimento, a vila do Tarrafal, e o que acontecia para lá do arame farpado e da vala que separava o campo, estaria já na origem da sua opção para abraçar a luta pela liberdade e independência nacional.
Joaquim Arena
Leia na íntegra na edição 898 do Jornal A Nação, de 14 de Novembro de 2024