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Mercenários africanos de Putin

Entre as largas centenas de prisioneiros russos, capturados pelos ucranianos, muitos são jovens africanos enganados com promessas ou tirados das prisões, directamente para a frente de batalha, nos campos do Donbass. A pobreza em que vivem nos seus países leva-os a aceitar propostas tentadoras e a sonhar com uma boa vida em Moscovo. Mas o desenraizamento e a via do crime empurram-nos para a morte certa.

De acordo com a reportagem da revista Jeune Afrique, na sua versão online, do passado dia 27 de Setembro, são milhares os jovens africanos a combater na Ucrânia, integrados o exército de Vladimir Putin. Vêm dos Camarões, da República Centro-Africana, da Costa do Marfim, do Mali, do Burundi. Só que grande parte estão na guerra contra a sua vontade, por via de muitas voltas que a sua vida deu. 

O site em questão mergulha no caso de Alain, natural da República Centro-Africana, acusado de ter roubado, o ano passado, uma mota em Bangui, a capital do país, mas que ele diz tê-la apenas levado emprestado para poder ir trabalhar. 

Detido na esquadra da polícia local, Alain recebe a visita de um homem branco que ele nunca viu. Um cidadão russo que se propõe a ajudá-lo a sair daquela situação, bastando para isso que ele aceite trabalhar para a sua empresa de segurança, mediante uma formação de três meses. Esta decorrerá na Rússia, informa-o o russo. 

Alain aceita e parte para a formação na Rússia. Entretanto, descobre que vários outros ‘futuros seguranças’, ex-detidos por alguma razão, também estão no seu voo que faz escala no Dubai, onde outros jovens africanos também sobem a bordo. Quando chega a Moscovo, Alain repara que para além dele existem entre 300 e 400 na mesma situação. 

Ainda de acordo com a Jeune Afrique, Alain recebe um contrato para ele assinar, em russo. Nem ele nem nenhum dos africanos sabe ler russo, não fazem ideia do conteúdo das cláusulas. Quando, finalmente, lhe dizem que acabou de se alistar na milícia Wagner, é tarde de mais. 

Alain é enviado para a linha da frente, para o inferno dos combates na Ucrânia. E é o início do pesadelo. Para ele e para milhares de jovens africanos. E tudo, segundo a Jeune Afrique, com a supervisão do ministro centro-africano da Criação e Saúde Animal, Hassan Bouba, precioso aliado do Grupo Wagner, agora transformado em Africa Corps, depois da morte de Yvegueny Prigozhin.

Enganados, de arma na mão…

Nos últimos tempos, com o aprofundar da guerra, a imprensa internacional tem dado destaque a esta realidade, através dos relatórios que chegam das autoridades ucranianas sobre prisioneiros de guerra russos capturados. É durante o interrogatório destes prisioneiros africanos que a sua história é revelada. 

Muitos confessam ter-se alistado em troca de dinheiro, como um jovem somali, que queria providenciar um ‘bom futuro’ para a sua família, julgando que seria colocado na parte da logística e apoio aos primeiros socorros. Outros disseram que nunca pensaram que seriam enviados para a linha da frente contra a Ucrânia e ali se encontravam, sem sequer compreenderem ou falarem russo… 

De acordo com a Agência Reuters, um homem natural da Serra Leoa declarou, em lágrimas, que havia pago a um recrutador e viajou para a Rússia para ter um ‘bom emprego’, para sustentar a família numerosa, acabou enganado e foi parar ao exército. Outros argumentaram terem assinado o mesmo contrato, em língua russa, para serem seguranças, oferecido a Alain. De acordo com a imprensa internacional, citando serviços secretos internacionais, o número elevado de baixas diárias nas frentes de combate, por vezes a ultrapassar um milhar de homens, levou Moscovo a virar-se para os milhares de estudantes africanos, imigrantes e condenados a penas de prisão a integrar as tropas russas no terreno. 

Ou a guerra ou a deportação

De acordo com a Bloomberg, as autoridades russas vêm ameaçando não prolongar os vistos de estudantes africanos e trabalhadores imigrantes caso estes não aceitem alistar-se no exército. De tal sorte que testemunhos dão conta que, após terem sido detidos, a alguns trabalhadores africanos é-lhes dado a escolher entre serem deportados ou alistarem-se para combater. 

Ainda de acordo com este órgão, alguns africanos conseguiram corromper elementos das autoridades administrativas  para se livrarem do alistamento e continuarem no país. Segundo os serviços de inteligência ucranianos, os recrutamentos de Moscovo têm vista, igualmente, africanos desempregados no país e cidadãos de pelo menos 21 países, incluindo de África.

Promessas tentadoras

E aqui destacam-se países como Ruanda, Burundi, Congo e o Uganda. A mesma nota de Kiev dá conta de que a Rússia vem oferecendo aos potenciais combatentes um bónus de 2,000 dólares, para além de um pagamento mensal de 2,000 dólares e a promessa de um passaporte russo. 

O recurso a combatentes africanos e de outros países do hemisfério sul resulta de haver cada vez menos condenados disponíveis nas cadeias russas para enviar para a linha da frente, para além da dificuldade de maiores mobilizações civis. 

De acordo com o jornal inglês The Independent, o número de estudantes africanos na Rússia andará entre os 35 e os 37 mil, que chegaram com bolsas diversas. Número este que poderá vir a aumentar, graças à mais recente aproximação de Moscovo a África e a nova ofensiva diplomática de Putin, que procura garantir apoios em organizações internacionais como as Nações Unidas. 

Se os primeiros recrutamentos e treinamento militar foram feitos através do Grupo Wagner, sobretudo junto de milícias tribais, o novo apelo é feito e controlado pelo ministro da Defesa russo, que dirige directamente o Africa Corps, a nova designação do Grupo Wagner. E aqui regista-se um redireccionamento para os estudantes africanos. 

Ainda segundo o jornal inglês, que cita um dirigente europeu, anteriormente colocado no Mali e no Níger, “após um período de baixa actividade no recrutamento, nota-se um aumento, que coincide com a expansão russa e a sua presença no Sahel e partes da África central”. 

O perfil destes combatentes – acidentais ou não – não varia muito: jovens em busca de melhores oportunidades na vida, que procuram fugir à pobreza, à miséria e a uma vida sem perspectivas, levando muitas vezes vidas complexas e problemáticas. A maior parte espreita a oportunidade para um bom salário, enquanto para outros a mais pequena oferta é uma promessa de ouro para abandonarem o país. São os alvos preferenciais dos recrutadores que agem sobretudo nas redes sociais ou através do contacto informal, com a promessa de ganhos imediatos e chorudos para uma vida vazia e sem saída à vista, nos seus países de origem. 

E o dinheiro oferecido, valores nunca vistos, é o suficiente para fazer sonhar estes jovens e tentador para quem vem de regiões muito pobres e cercadas por conflitos. Mesmo os soldados africanos das milícias locais, com experiência de guerra, que decidem juntar-se ao exército russo, cedo descobrem como lutar na Ucrânia é muito diferente de combater em África, com outro tipo de armamento pesado e letal. A maior parte dos que são incorporados, dizem os especialistas, acabam por morrer.

A história de Alain é das poucas que acabaram bem. Escapou ao destino de muitos dos seus camaradas – de ser carne para canhão, no exército de Putin. Após alguns meses de inferno, incorporado nas forças do Grupo Wagner, que travavam combates contra o exército ucraniano, Alain conseguiu fugir e refugiou-se na Letónia, um dos três países bálticos apoiantes dos ucranianos. O jovem centro-africano relatou ao repórter da Jeune Afrique como ainda sagrava dos ouvidos por causa das detonações e das explosões, para além de descrever como era a vida num campo constantemente bombardeado, dias e noites sem comida nem descanso, ‘entre cadáveres’, num verdadeiro pesadelo, contou.

 

Joaquim Arena, com agências

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