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Crise da educação em Cabo Verde: Análise do PCFR na ótica do educador

Por: Alexssandro Robalo

Há quase um ano que a educação pública passou a ser um dos tópicos principais de discussão em Cabo Verde, tendo sido objeto de um sem número de matérias jornalísticas nacionais e internacionais (RFI, DW, Agência Lusa). De outubro de 2023 ao fim do último ano letivo, aconteceram intensas manifestações, greves e não disponibilização das notas no SIGE.

Por outro lado, a história registra um momento singular de reivindicações nesta matéria, tendo como fortes protagonistas os estudantes das ilhas de Santiago, São Vicente, Santo Antão e Sal. Estes últimos em solidariedade aos seus educadores, assim como sujeitos cientes e conscientes da decadência do sistema de ensino, demonstraram que os problemas atuais são deveras preocupantes. As inúmeras entrevistas feitas na altura servem para ilustrar as fragilidades da reforma do sistema em curso, nos domínios curriculares e em termos de sistema de avaliação.

Se vigorasse, no país, um real espírito democrático, a atitude dos dirigentes políticos seria radicalmente diferente daquela que tem sido prática: forte propaganda governamental, criando ruídos, cancelando um diálogo franco sobre o assunto. Como prova,  os dirigentes, nacionais e locais, continuam falando de “balanço positivo”, difundindo a miragem da aproximação do nosso sistema de ensino ao dos países mais “avançados”. 

Se sonhos e utopias são necessários, a disseminação de ilusões e fantasias representa um enorme perigo!

Partidite: fábrica de amnésia coletiva

Apesar de todas as lutas travadas e reivindicações formuladas, penso que boa parte da nossa sociedade preferiu o silêncio e a indiferença perante o debate aberto pelos professores e sindicatos. Mesmo que a educação pública afete toda a sociedade, a postura escolhida foi a de sem djobe pa ladu. Contudo, grande mudança deu-se num momento particular: o veto do PCFR (Plano de Carreira, Funções e Remunerações) pelo Presidente da República (PR). As indiferenças e silêncios metamorfosearam-se, passando a haver um (pseudo) engajamento em relação à matéria educativa. Só que a maioria esmagadora simplesmente fez uma mimetização das narrativas dos dois maiores partidos do país. A reflexão crítica e realista cedeu totalmente o seu lugar ao fanatismo doentio. A partidite – doença crônica difundida em Cabo Verde, num nível epidêmico – esquartejou a sociedade em duas partes opostas: os verdes defendendo o PCFR/acusando o PR de “vingança”; defendendo o “seu” PR/atacando o diploma em questão.

Consequência desta batalha fratricida, a amnésia coletiva foi instalada! Ambas as claques preferiram ignorar que toda a situação de luta atual à volta da nossa educação teve como protagonistas os professores e sindicatos! Enquanto a claque verde não assume que o chefe do governo passou o ano letivo passado num silêncio ensurdecedor, já a amarela talvez nem saiba que o “seu” PR manteve uma postura soft em relação à luta, tendo solicitado uma maior “ponderação”. A amnésia imperou novamente no país que se tem especializado em apagar/silenciar a sua própria memória.

Assim, é mister afirmar que uma ameaça paira sobre a democracia cabo-verdiana. Quando questões importantes são “tratadas” (quase) exclusivamente pelo viés partidário, o perigo torna-se cada vez mais iminente. Numa altura em que celebramos (sim, celebramos!) o centenário do nascimento de Amílcar Cabral, não podemos cansar de repetir que é imperativo que pensemos pelas nossas próprias cabeças! Este princípio cabraliano não é um mero slogan, trata-se de um princípio orientador de pensamentos e práticas.

Se a partidite não for combatida e derrotada, a sua maior vítima será a própria democracia!

PCFR: a realidade que o aumento salarial camufla

Tal como fanáticos desportivos que defendem as suas equipas sem assistir os jogos, assim tem ocorrido com a maioria que se posiciona como claque dos verdes ou dos amarelos! Preferem falar de algo que não conhecem, porque não leram o tal PCFR do pessoal docente! A coerência obriga-me a concordar com Ministro da Educação (ME): muitos professores não conhecem esta proposta legislativa. Se conhecessem a revolta e a indignação seriam mais fortes! Uma leitura crítica do documento permite que se chegue a duas conclusões fundamentais: de um lado, pode-se notar que a propaganda à volta do aumento salarial cumpre a função de “areia nos olhos” da classe; de outro, nota-se que o objetivo implícito é aprisionar a classe e abortar iniciativas que transformem a educação pública.

 Não é estranho abordar um documento com  cerca de 60 páginas e 106 artigos fazendo referência apenas ao aumento salarial? Assim tem sido as intervenções públicas dos altos dirigentes políticos e toda a claque que os suporta. Tudo indica que vêm os professores reivindicativos como autênticos mercenários, que andam a buscar dinheiro e mais dinheiro! Vale relembrar que há bem pouco tempo as ações dos professores foram rotuladas de “extremistas” e “radicais”, pelos dirigentes. Portanto, as duas estratégias montadas – apresentar a classe como espécie de mercenários e designar suas ações de “extremistas”/“radicais” – têm o mesmo fim: extirpar a legitimidade social e moral da luta pela dignidade e justiça levada a cabo pelos educadores.

Cumpre dizer que, largamente, o PCFR reproduz a mesma “arquitetura” presente no Estatuto de Pessoal Docente de 2015. A mudança substancial é a ampliação do documento e uma linguagem juridiquês mais “sofisticada”. Todavia, o mesmo documento que prevê o tão propalado aumento salarial acaba por deteriorar as condições e direitos da classe docente. Ora, o PCFR, como está, representa um retrocesso enorme para a classe, precarizando as condições laborais, em termos de direitos. Em contrapartida, os deveres da classe aumentam de forma absurda: são deveres perante todos! Desta forma, haverá uma maior pressão sobre os professores, com efeitos nefastos para a saúde mental dos mesmos. Por isso, estamos perante uma clara violação dos princípios de razoabilidade e proporcionalidade, porque é assustador o desequilíbrio entre direitos e deveres.

O mesmo documento traz no seu bojo um forte poder de controle sobre os professores, exageradamente. Os artigos referentes à questão de mobilidade e imparcialidade são exemplos paradigmáticos no que concerne ao controle exacerbado sobre os educadores. Em termos de mobilidade, com este decreto legislativo, os professores perderão o direito de decidir onde fixar a sua residência de trabalho, uma vez que esta questão terá controle absoluto dos serviços centrais. Quanto à imparcialidade, será uma matéria sob “tutela” das delegações, dando a estas o poder de decidir sobre outras atividades desempenhadas pelos docentes.

Com esse PCFR, a classe estará fortemente vigiada e punida por um aparato legal com força absoluta! Num país onde ainda predomina a partidarização generalizada e a represália constitui um mecanismo de eliminar o pensamento crítico e autónomo, faz-se necessário retirar a “areia dos olhos” e rejeitar tudo aquilo que serve apenas como um instrumento opressivo e anulador de direitos!

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