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A “Expectativa Jurídica” o Princípio da “Navalha de Ockham” e o ainda caso da “Primeira-Dama”.

 Por: João Santos

A direcção e o controlo políticos superiores do nosso país requerem  força, estabilidade e resistência diante das fúteis e fraudulentas vozes que  exigem um aportet decidere, não se deixar intimidar por ataques injustos e continuar a cumprir o seu papel de maneira determinada, como a torre firme que, não obstante a fúria dos ventos, nunca tomba. Há palavras que atravessando séculos, e uma vez  convertidas em aforismos, constituem nódulos fixos em que descansa a reflexão, dizia o mestre, C. Neves. E, “pô-las em causa, é sempre um incómodo”, uma impertinência, acrescenta. 

Ora, essas endurecidas ataduras revelam-se evidentes entre nós nas ainda mui perturbadas discussões que o “caso” Primeira-dama favoreceu. Adequado seria, que a essa fúria dos ventos se desse lugar a uma brisa outra, que alterasse o ambiente político, capaz de positivamente o influenciar, amenizando-o, de modo a que o debate se faça, ainda que controvertido, contudo menos crispado e mais congregador. 

Afinal, o direito é para servir a vida! Em confronto, dois tipos de argumentação: uma, que, para além de sólida, testada, debatida, desafiada e desenvolvida ao longo de séculos pela doutrina e posteriormente ensinada nas Universidades, e, uma outra, que se nos apresenta fundamentalmente influenciada por vieses de natureza subjectiva, visa a obtenção de ganhos de natureza política, absolutamente avessa aos cânones da ciência jurídica. O infausto disso tudo é que, estes, atracados ao poder, serpenteiam entre o ter que puxar dos galões que essa condição lhes dá, ou então, assumem uma espécie de autoridade intelectual, pretensiosamente hegemónica, enquanto desdenham de quem ousa pensar diferente daquilo que alvitram. 

Ora, essa imposição autoritária de uma parte sobre a outra, sem interlocução consistente, é incompatível com uma sociedade dita democrática. É, sim, uma forma de autoritarismo disfarçado. Na verdade, nas discussões políticas, e não só, o recurso ao conhecido “Princípio da navalha de Ockham”, a lex parsimoniae, é bem mais eficaz, pois sugere que, entre várias hipóteses possíveis que explicam e ajudam a compreender um mesmo fenómeno, a mais simples tende a ser a melhor. 

Entretanto, importa salientar que a “navalha que corta a eito” não garante que o critério seja absoluto, nem, muito menos, o mais correcto. No debate jurídico, o recurso a simplicidade expositiva, sendo uma virtude, em muitos contextos, onde não raras vezes se lida com questões intrincadas que requerem uma análise detalhada e minuciosa, sobretudo quando envolvem múltiplas interpretações da lei, a simplicidade pode não apreender toda a complexidade envolvida, obscurecendo, até mesmo, subtilezas importantes e o respeito de princípios aparentemente contraditórios. Se a hermenêutica jurídica exige interpretações refinadas, a parcimónia extrema poderá desconsiderar elementos relevantes para a realização da justiça. Daí que o seu equilíbrio deva ser cuidadosamente ponderado! 

Pelas penas e vozes de juristas, detentores de credibilidade profissional, orgíacas considerações críticas têm dominado o espaço público cabo-verdiano. Proverbialmente, apetece-me dizer, “tanto roem quanto sopram”. Vejamos, então, a questão da figura da Primeira-dama. Existe ou não? Se sim, como entendê-la? 

Revisitando o saudoso O. de Carvalho, há direitos, há situações jurídicas, ou estatutos que, sem serem ainda concretas situações de prevalência, são, de algum modo, já antecâmaras disso, são como que direitos subjectivos em embrião e protegidas juridicamente como tais. É o que sucede quando por qualquer razão um estatuto ainda não existe como status perfectum, porque falta qualquer um dos elementos (a lei) de que depende o seu surto. Porém, contrariamente ao que se pretende fazer crer, com recurso ao princípio da legalidade, a falta desse elemento não é, nem longínqua nem fortuita. Apenas, e só, por completar se encontra a “ossatura legal” para que o estatuto esteja completamente formado. O estatuto, in fieri, contudo esperado, depende unicamente da entrada em vigor da legislação correspondente. 

Não se trata, pois, de uma simples esperança. Com origem na Pandectista, de que somos herdeiros, prevalece a linha clássica da ciência e doutrina germânicas, que as considera como fases intermédias na formação de um direito, mais ou menos consistente, produtora de efeitos jurídicos prévios. Foi assim que nasceu a “Teoria da formação progressiva dos direitos.” 

Daí, questiono, o seguinte: – com base em que teoria se explica nas nossas universidades, por exemplo, que na “aceitação da herança” prevista no art.º 1978.º do nosso Código Civil, a posição do herdeiro, mesmo antes de aceitar, não pode deixar de haver-se como uma spes juris, logo, merecedora de tutela jurídica? O que diz à-propo, o art.º 1975.º do mesmo Código, sobre a “Administração dos bens”, mesmo quando o sucessível chamado herança, ainda não a tiver aceitado? Mais, (art.º 1986.º C. Civil.) e se o chamado à herança falecer sem a haver aceitado ou repudiado, transmite-se, ou não, aos seus herdeiros o direito de a aceitar ou repudiar? E etc.. 

Com que alicerce teórico e doutrinário, perguntava, se explica, por exemplo, que a doação feita sob condição ou termo suspensivos, embora careça da sua produtividade normal, a situação jurídica, nas palavras do Prof. O. de Carvalho, “já se encontra concretamente definida no seu rosto”?  

Ou seja, a lei não cria ex nihilo direitos, mas apoia-se fenomenologicamente nas situações observadas da vida para os criar. O Direito é um posteriori e não um priori. O lacerar excessivamente a análise de questões jurídicas sem sopesar todas as ideias, esquivando às vexatae questiones, preferindo a ligeireza e rotina, essa tentação de tudo simplificar para se chegar a decisões rápidas, essa “ejaculação impaciente”, conduzem, necessariamente, a resultados precipitados, distanciando-se do rigor e da seriedade exigidos. 

Vejamos, então, como é que muitos juristas, excitados, têm qualificado, juridicamente, a relação do P.R. com a sua companheira. Dizem, não são casados, vivem em união de facto, mas não reconhecida, logo, são namorados. Se assim é, de acordo com o Princípio da Legalidade, a Primeira-dama, não existe! Ora, isto é risível.  Mas mais, prova inequivocamente, o que acima sublinhei, a parcimónia na análise da questão não lhes permite ver nem interpretar o que, em muitos casos, eles mesmos escreveram, ao participarem das revisões legislativas operadas no nosso país. 

Quando, em 2003, se aprovou um novo Código Penal, o legislador consagrou, para o crime de homicídio, agravado em função da qualidade da vítima, art.º 124.º, o seguinte: “A pena de prisão será de x a y, quando as circunstâncias do caso revelarem um acentuado grau de ilicitude do facto ou da culpa do agente e a vítima for: a) Descendente ou ascendente do agente; 

Ora, com esta a), o legislador, tão simplesmente, respiga a conhecida “técnica de exemplos padrão”. Em 2021, o governo entendeu que se devia rever o nosso C. Penal. Para além  de se ter agravado ainda mais a pena, nessa mesma a), do 124.º, trouxeram uma nova redacção em que se acrescenta, “adoptante ou adoptado, cônjuge, ex-cônjuge, unido de facto, ex-unido de facto do agente, ou pessoa com quem este mantenha ou tenha mantido relações de namoro”. Vejam só, “relações de namoro”. 

Ora, com recurso à “técnica de exemplos padrão”, bastava o que constava nessa antiga a). É que, quando acrescenta as relações de namoro, está a dizer que esta relação, materialmente, se equivale, para efeitos penais, claro, à de cônjuge ou união de facto. Pergunta-se, mas uma relação do tipo, tem também equivalência civil? Tem(!), pois não estamos perante uma divergência entre ramos, antes, perante a compreensão de que o sistema jurídico é um todo integrado, onde os diferentes ramos interagem e se complementam. Tal se alcança, aliás, a partir da interpretação sistemática do direito, para compreensão de situações que não se encontram plenamente cobertas pelo direito civil. Alguma vez, em Portugal, alguém ousou pôr em causa a relação entre Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis? 

A linguagem jurídica é fértil em ambiguidades e imprecisões, conota sentidos, apresenta uma textura aberta, nela proliferando o que  o autor Hohfeld refere como palavras “camaleão”. U. Eco diz que a língua natural não é “omniefável”, que tem limites na sua capacidade de  expressar todas as realidades, ideias ou experiências. No direito, também é assim, pois há imensas palavras “camaleão” que o jurista tem que concretizar. 

Lê-se por aí, ainda, que a Presidência não podia comprar, sem concurso, ao Chefe da Casa Civil, um quadro artístico por “x” contos, como se nessa compra e venda não estivessem perante uma relação de paridade, com autonomia e liberdade das partes, e não de supra-infra-ordenação. Essa relação de compra e venda é e foi feita no quadro de uma paritária intersubjectividade, própria do Direito Privado. Apenas! 

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