Por: Cipriano Fernandes*
Até aqui tenho apresentado as razões por que, a cada dia que passa, o futuro da capital de Cabo Verde vai ficando mais negro. Continua-se a falar de Estatuto Especial, quando a Praia já o tem, pois pertence-lhe o estatuto especial único de ser a CAPITAL de Cabo Verde, MISSÃO que, obviamente, nenhuma outra cidade nossa pode ter. Ela não precisa de nenhum outro estatuto especial. O que precisa é de TERRITÓRIO para poder cumprir essa missão, recurso que descaradamente lhe foi sendo retirado pela 2ª República, ao ponto de hoje ela não ter qualquer viabilidade, impossibilitada de cumprir tal missão. Aliás, estou cada vez mais convencido de que a saga (do fracasso da efectivação política) do Estatuto Especial não foi nada mais que uma cortina de fumaça, uma anestesia para tornar indolor e despercebida a sabotagem da subtração de território que paralelamente foi sendo executada pelos dois partidos políticos dominantes.
Essa sabotagem vem sendo executada impiedosamente até ao dia de hoje e facilmente se vê que o MpD foi sempre MUITO mais intencional, determinado e nefasto nessa sabotagem do que o PAICV. Dois exemplos:
Foi José Ulisses Correia e Silva (no início do seu segundo mandato como Presidente da CMP) quem encarregou (“Prinda longuiça na piskoss di gato!”) o advogado que é uma das duas personagens individuais centrais do Processo “Praia Leaks” de liderar uma arbitragem para justificar a posse da Imobiliára X (que, convém recordar, é a personagem colectiva central do Processo “Praia Leaks”) sobre vastíssimos terrenos da parte oriental da cidade da Praia.
É com José Ulisses Correia e Silva como Primeiro-ministro que, em 2021, o Governo da República aprovou o diploma (Decreto-lei n.º 21/2021) que reconfigurou a delimitação da ZDTI do Norte da Praia para justificar a desanexação de toda ponta sul da mesma, vários hectares de terrenos que hoje estão a ser urbanizados e comercializados pela Imobiliária X. (Quando se sabe que o actual Vice-Primeiro Ministro é um dos donos da Imobiliária X, devíamos estar a falar de enriquecimento próprio indevido!). Um facto que se destaca e que serviu de base e é até expressamente referido por esse diploma do Governo é a CMP (através do PDM mandado elaborar por Ulisses Correia e Silva em 2014) a dizer que tal desanexação se justificava pelo facto da ZDTI não ter sido implementada e (PASME-SE!) porque a cidade já não tinha território disponível, precisando expandir nessa direcção sem, no entanto, ter a seriedade de reivindicar para si a posse dos terrenos desanexados! Ou seja, mais um dos muitos casos de como, ao longo de toda esta 2ª República, a CMP foi instrumentalizada para a promoção de interesses privados em detrimento dos interesses dos munícipes praienses.
OK. Praia, Capital de Cabo Verde, tem sido sistematicamente sabotada até hoje, essencialmente porque lhe foi negado o acesso e o controlo do vasto território de que dispunha em 1993 e, sobretudo, de todos os seus terrenos com vista para o mar. E agora?
A Praia e a região que historicamente influenciou não podem continuar como têm estado até agora, pois estão à beira da falência total. Na nossa capital, hoje, para além da extrema vulnerabilidade perante catástrofes naturais, as infraestruturas estão todas rotas e incapazes de sequer suportar as demandas presentes, quanto mais as futuras. A rede de esgotos está falida com a ETAR há muitos anos a enviar dejectos não tratados para o mar, a Electra precisa de mais de 20 postos de transformação para poder satisfazer uma demanda cada vez mais crescente em zonas em que NÃO se devia aumentar mais a carga demográfica, a ADS preside a uma rede de distribuição de água muito precária, que não cobre adequadamente grande parte da cidade e é incapaz de suportar a pressão de uma água 24 horas disponível na rede, as operadoras de telecomunicações prestam serviço através de inestéticos e precários postes de madeira dentro dos centros urbanos e, entre tantas outras desgraças, a crise habitacional agrava-se cada vez mais, arrastando consigo a ocupação desordenada do território perante uma CMP desde sempre incapaz de impor a sua autoridade perante munícipes cada vez mais atrevidos na sua indisciplina e desobediência. Se buscarmos entender o porquê da insegurança que aumenta todos os anos, tenho para mim que é inevitável concluir que isso tem muito a ver com falta de qualidade dos nossos bairros, pois ninguém pode culpar a PN por não praticar o policiamento da proximidade em lugares que são emaranhados de becos.
Mas a respeito do exercício da autoridade municipal, um dos mais gritantes aspectos da sabotagem feita à cidade na 2ª República se prende com o facto de em 2009, Ulisses Correia e Silva, sob a tutela e com permissão de José Maria Neves, ter inventado a Guarda Municipal (GM), uma força extremamente limitada em efectivos devidamente preparados e financeiramente blindados. A GM, por lei, já à partida nasceu incapaz de lidar em primeira mão com infractores (pois que impedida de portar armas), e foi pensada para apenas funcionar como um canal intermédio para se activar a Polícia Nacional (PN). Isto está na base da calamidade nacional que é hoje a ocupação clandestina de terrenos na capital, pois com a criação da GM deu-se à Polícia Nacional o pretexto para fugir às suas responsabilidades directas no controlo e prevenção da ocupação clandestina de terrenos alheios. Hoje é banal ver EMPRESAS a ocupar clandestinamente largas extensões de terrenos com actividades comerciais, industriais e agrícolas, como consequência de 15 anos de uma PN ausente e uma GM completamente incapaz de enfrentar forças naturalmente mais poderosas do que ela.
No dia 22 de Agosto de 2022 o Presidente Francisco Carvalho enviou um pedido de apoio ao Director da PN e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas para que nos apoiassem no esforço de controlar o fenómeno da ocupação ilegal de terrenos. Nesse documento ele os informava da impotência da GM em controlar a situação e, essencialmente, pedia que essas duas entidades apoiassem, no terreno, uma intervenção que, previsivelmente, levaria muito tempo para ter sucesso completo. Nesse documento Francisco Carvalho descrevia as dimensões de calamidade nacional que esse fenómeno havia ganho no Município da Praia ao longo de muitas décadas.
Importa dizer que esse documento seguiu com o conhecimento do Sr. Presidente da República, do Sr. Presidente da Assembleia Nacional, do Sr. Primeiro-ministro, dos Srs. Presidentes das Câmaras Municipais de S. Domingos e da Ribeira Grande e dos Líderes das bancadas parlamentares do PAICV e do MpD e nele se explicava que o objectivo era parar com a proliferação da ocupação ilegal através da delimitação, com pilaretes, das zonas já ocupadas que seriam então objecto de planeamento com vistas à sua adequação urbanística, sendo que todas as construções que aparecessem para além dessas delimitações seriam imediatamente demolidas. A PN assumiria o exercício da autoridade, como lhe compete por lei, e as Forças Armadas disponibilizariam efectivos para guardar permanentemente as delimitações em postos que a CMP instalaria, comprometendo-se com todo o apoio logístico, acondicionamento e alimentação desses guardas.
Nem a PN nem as Forças Armadas aceitaram e nenhuma reação se ouviu até hoje de qualquer das supremas entidades da Nação acima referidas. Em pouco tempo os pilaretes instalados foram derrubados sem que os autores fossem descobertos e a situação, naturalmente, piorou exponencialmente desde então.
Praia, 9 de Setembro de 2024
(continua…)
*Arquitecto, Director do Planeamento do Território e Habitação da Câmara Municipal da Praia