Por: João Santos
Data de 1872, a publicação da obra “A Luta pelo Direito“de JHERING. Considerado um trabalho particularmente iluminado para a época, o autor desenvolve uma teoria em tudo adversa ao imobilismo até então reinante no mundo do direito.
Lia há dias, um texto de um nosso distinto político, publicado na sua página do facebook, sob o título, sartriano, diga-se, “As Mãos Sujas na República”, em que fazia uma intrigante referência a Shakespeare. É comum os políticos, e os juristas também, fazerem analogia literária para realçar uma crítica qualquer, sobre a maneira como as pessoas procuram defender os seus direitos e interesses. Achei-a hiperbólica, e sobretudo atentatória dos princípios constitucionais de um verdadeiro Estado de direito, democrático. Que Shakespeare terá dito “que todos erram um dia: por descuido, inocência ou maldade”. Dizia ainda que tem estado calado, recusando “paga lumi ku gasolina (…). De facto, nos tempos actuais, tenho por mim que, se “não se apaga o fogo com gasolina”, incendeia-se tudo, através da semiótica que usamos.
Sendo o descuido uma “violação do dever de cuidado”, um agir negligente, há culpa, logo, há responsabilidade, ainda que diminuída. Quando a maldade existe, por contraposição, já é dolosa, implica um “querer”, há uma identificação da acção com o resultado. Pedir que funcione a “lei do retorno”, é apelo ao talião, uma espécie do “kanun” albanês. É impressionante, tamanha a primitividade, posta em prática. Se o que o autor dessas palavras deseja que a Constituição da República não seja vista de modo displicente, porque não apelar à mesma Constituição, para que se cumpra o n. 1), do seu artigo 35.? Porque não apelar à presunção da inocência, em vez da presunção da culpa, própria dos regimes autoritários? O que está publicado, só pode ser movido por desejo de vingança, qual “kanun”, repito, do tipo albanês! Pior, tudo sob escolta extremosa de uma “plêiade” de juristas.
É por isso que pretendo agora, também revisitar, muito resumidamente, o célebre drama shakespeariano, “O Mercador de Veneza”, descrito por JHERING, vis-à-vis, a calamidade interpretativa dos positivistas do direito cabo-verdiano. O drama conta-se, assim: Shylock, um usurário, emprestara a António, comerciante, uma certa quantia em dinheiro, que este devia restituir, num certo prazo. Dos clausulados do contrato, Shylock tinha consagrado uma, verdadeiramente draconiana:
– “caso se verificasse o incumprimento, Shylock tinha o direito de cortar uma libra de carne de qualquer parte do corpo de António.”
Infelizmente, um acidente no transporte das mercadorias do “nogócio” de António, impediu-o de devolver o empréstimo, no tempo aprazado. Shylock leva o caso ao tribunal e quer que seja cumprida a cláusula que lhe dá o direito de cortar o “pedaço de carne” do corpo de António. O juiz (leia-se, os nossos juristas) entende que, em defesa do princípio da Legalidade, o contrato devia ser rigorosamente cumprido, tal como estava estipulado. É então que entra em cena a Pórcia (encarna poucas pessoas, entre nós) disfarçada de advogada e diz:
– de facto, o contrato permite a Shylock cortar uma libra de carne, mas ele não pode derramar nem uma gota de sangue. O contrato não permite o derramamento de sangue.” Este singelo exemplo, mostra que o cumprimento estrito da lei, pode ser contrário ao sentido de justiça que, em última instância, é a verdadeira intencionalidade material do direito. Mandasse cumprir o contrato, em obediência ao Princípio da Legalidade, estaria o juiz, sim, a praticar uma verdadeira ilegalidade.
Ora, o que desejam os “inimigos” do Dr. JMNeves é um ajuste de contas, uma desforra, através de uma feroz perseguição à sua pessoa, enquanto P.R. Uma vindicta, apenas. Não pode ser assim!
O direito carrega um sentimento jurídico, não é só um sistema de normas, vazias, como pretendeu Kelsen, na sua “Teoria Pura do Direito”. Não tendo o positivismo jurídico essa dimensão presente, não dá resposta às situações que a lei responde deficientemente. O argumento da auto-suficiência do que existe na lei, ou o apelo para que se legisle, tal como recomendou o Dr. P.Veiga, é quixotesco.
Particularmente comum em todo e qualquer sistema jurídico do mundo, é a sua incompletude. Excessivamente formalista, estão a desconsiderar, de forma absolutamente inaceitável, qualquer ideia de justiça, na realização do direito. Na verdade, o filisteísmo é o oposto daquilo que se espera de um político ou de um jurista. Mundos tão complexos, reclama-se daqueles que neles se envolveram e fazem neles a sua vida, CULTURA, tão indispensável “como o ar que respiramos”, diria Antonio Monegal.
Um jurista, por natureza, é um homem culto. Não é só ser bom no manuseio de um Código, a expedita localização de um art., ou o reproduzir de cor o seu conteúdo que faz do jurista, um bom jurista. Antes, importa a compreensão da intencionalidade prática do direito. O jurista deve ter a curiosidade insaciável e a mente aberta de um Cervantes, de quem J.L.Borges dizia, “lia tudo, até o pedaço de papel que, carreado pelo vento, lhe chegava ao pé dos seus pés”.
Não se pode estar preocupado mais com a forma, com a aplicação mecânica das leis e das regras, do que com a compreensão dos princípios e valores que as fundamentam. Um jurista sério, não aplica cegamente o que dizem as leis, sem questionar os seus fundamentos, não se serve de uma qualquer “técnica desumanizada”, sem se preocupar com a revelação da função social e de justiça, que lhe são intrínsecos. É que o direito não é um simples conjunto de normas e regras, mas sim um Princípio normativo, constitutivo, eternamente aberto. É um constituendo e não um costituto. Porque a verdadeira ilegalidade é quando não se realização a justiça, mesmo que a aplicação da lei num determinado sentido esteja em conformidade com a legislação existente.
Esta polémica – que como bem sublinhou o Sr. P.R., na sua comunicação ao país, podia não te ocorrido nos termos em que ocorreu -, tem suscitado alguma discussão, quantas vezes acalorada, nas redes sociais. Aproveito a circunstância para responder, em globo, algum eventual mal-entendido da parte de pessoas por quem, mesmo discordando, nutro respeito, simpatia pessoal e intelectual.
Ora, o rigor legalista tem levado a que se questione, duas questões consideradas essenciais. A primeira prende-se com o estatuto civil do Sr. P.R. Sabe-se que é divorciado. Ora, tal “não o impede” de constituir uma nova família, neste caso, em união de facto. Dessa condição, não tem nada para esclarecer à sociedade. Contrariamente, seria para o casamento, e se se fizesse necessário, fá-lo-ia, documentalmente. Na união de facto, a prova dessa condição, faz-se, pelo reconhecimento social, porque é «evidente». Também não lhe é exigível, por ser P.R., um “particular dever” de esclarecimento sobre o seu estado civil. Um disparate, que apenas visa obter vantagens políticas.
Sobre o salário que auferia a P.D., limito-me a recomendar a leitura da Comunicação que o PR fez ao país. Dizer que é ilegal, só porque não está na lei, não passa de uma absurda quão peregrina argumentação, de todo insubsistente, ademais, dado o seu carácter de provisoriedade até que uma solução legal razoável fosse encontrada. O rigor legalista levado ao extremo, paralisaria, colapsaria a vida de uma sociedade. Até porque, símiles problemas que se colocam ao Direito, não se resumem na ausência da lei. O contrário também ocorre, se se verificar o efeito da “inflação legislativa”. É que o valor do positivismo jurídico é a segurança e não a justiça! Típico do séc. XIX, já que se entendia que o direito estaria realizado na lei, dada a sua publicação formal.
Direito justo não é, hoje, o direito da certeza legal, com exclusão de qualquer atitude valoradora. Recomendo que pensem nisso, também.
Praia, 26. agosto. 2024
santosjfb@gmail.com