Por: João Santos
Entre nós, resolveram um dia dizer-nos essa coisa espantosa, a de que, com a Constituição da República de 1992, o regime autoritário instituído após a independência, em 1975, tinha acabado. Parafraseando o filósofo britânico, J.L. Austin, o precursor da “Teoria dos Actos de Fala”, há momentos em que “dizer é fazer”. Por exemplo, o acto de fala em que o oficial da Conservatória do Registo Civil diz, “Eu vos declaro marido e mulher”, está claramente a realizar um “acto performativo”, o de casar. De outro passo, há também coisas que não podemos fazer, porque não sabemos como dizê-las, ou porque as dizemos mal. Pode acontecer quando o falante não tem intenção de cumprir o propósito da promessa (Abuse) ou, quando há violação das regras, por as suas palavras não serem sinceras. Essa, muito concretamente, de que o autoritarismo tinha acabado, com a Constituição de 92!
Ou, se quisermos uma outra imagem, talvez mais concordante com a realidade, e que se contrapõe ao ludíbrio desse epidíctico discurso com que iniciei o texto, há várias formas de algo acabar, diria W. Streeck, o sociólogo económico e director emérito do Instituto Max Plank para Estudo de Sociedades, em Colónia, Alemanha. E, uma delas é perpetuando-se como “mortos-vivos”.
Ora, o autoritarismo anterior, manifestava-se, essencialmente, pela imposição constitucional de um regime de partido único, pela inexistência de um catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mas, também pela não consagração expressa do princípio da separação de poderes. Isto é algo tendencialmente pacífico, hoje, e não há motivos para reatar a sua discussão, pelo menos para o que neste momento interessa.
Mas, o que o comum das pessoas não consegue com facilidade observar é que o autoritarismo cabo-verdiano se metamorfoseou, apenas, e que, na verdade, não houve uma verdadeira transição para um Estado de direito democrático, constitucional e liberal. Os exemplos de que continua vigente, entre nós, um regime autoritário são inúmeros, não obstante as subtilezas como se manifesta. Antes de mais, porque legalmente não se estrutura nos moldes do anterior. Tenhamos antes de mais em atenção que os actuais dirigentes são eleitos, no quadro de um sufrágio universal, supostamente livre e democrático.
O que é peculiarmente estranho é o facto das muitas credenciais que Cabo-Verde tem merecido como país democrático, não tem evitado, antes, tem facilitado as mais diversas práticas autoritárias. Se assim é, o que verdadeiramente importa denunciar são as práticas, as práticas autoritárias, repressivas e antidemocráticas, sob capa formal-abstracta da Constituição, da lei e do direito. É também por isso que, se nos apresenta menos insidioso que o “autoritarismo tradicional”, é, contudo, similarmente tão ardiloso quão traiçoeiro. Ao falarem em legitimidade política, da legalidade e seu princípio, não raras vezes, estão a encobrir actos de perseguição dos seus adversários políticos, transformados em inimigos cívicos, como os caracterizou Jason Brennan. Para tal, torna-se essencial é que se instaure, que se funda no interior de cada um, de cada organismo do Estado, na subjectividade de cada um dos seus representantes, um “policial”, que vigia o que faz, como decide, mesmo que este vista as roupas do médico, a beca, ou a bata de um profissional, seja ele qual for. É isso que na verdade caracteriza o “autoritarismo líquido”, como determinados autores o qualificou. Líquido, porque enganoso, porque age dissimuladamente. Sob a capa aparente de se estar a cumprir a lei ou a constituição, de que se está a exercer a democracia, no fundo, o conteúdo material de quem é chamado a agir, nada tem de jurídica nem democrática. A acção é radicalmente política e tirânica, de vindicta contra o adversário, contra o rival, eleito como inimigo. E, cuidado, se quem exerce o poder, exerce-o de forma líquida, o inimigo também é líquido. Desengane-se quem pensa que o inimigo, entre nós, é apenas o Presidente da República. Não! Ele é cirurgicamente escolhido, ora o PR, ora os sindicatos dos professores, ora certos jornalistas da rádio, e da televisão, ora o funcionário público que entenderem ser um infiltrado, para dificultar a execução das políticas do governo, e, até mesmo, o simples cidadão que manifesta a sua indignação, denunciando um fracasso qualquer na concepção ou na execução da política para o sector em apreço. E etc., pois até um simples “cão de pescoço pelado”, diria o eminente administrativista de Coimbra, o saudoso Rogério E. Soares, para revelar como um simples particular, eu, por exemplo, está à mercê das investidas do poder público, perseguido, transformado em inimigo, o assediam judicialmente, mesmo que indirectamente, visando a sua mordaça. É a instauração subtil da “cultura do cancelamento” onde a primeira vítima não é a mentira, mas sim a verdade. Dramaticamente, somos monitorados, até por quem nos é, de algum modo, próximo. Para dizeres o que quiseres tens que estar do lado do poder que, obviamente, cria uma “realidade paralela”, completamente distorcida da realidade, mas, mais ainda, a liberdade de expressão é selectiva e desigual, que mais parece um “Admirável Mundo Livre”, se quisermos relembrar Aldous Huxley.
Assim, o partido único deu lugar a personalidades autoritárias e tirânicas que são incapazes de se autocriticar, como se alguma vez fosse possível o exercício do poder sem que se cometa erros.
Quanto ao princípio da separação de poderes, faz lembrar a asserção freudiana que diz que o problema dos ideais e princípios é que é algo que aparece no princípio, mas nunca no resultado. É escandaloso observar o que vivemos hoje, em que de um relatório que devia ser essencialmente objectivo e técnico, logo, neutral, se antecipa uma decisão judicial que se deve limitar a absorver o conteúdo do mesmo, fora de uma discussão processual, seguramente controvertida, em violação clara do princípio do (nemo judice sine procedure), ou seja, de que “não pode haver um julgamento justo sem o devido processo legal”. Ora, quanto ao exercício democrático do poder em Cabo Verde, importa dizer que se manifesta apenas pela impossibilidade constitucional-legal de concentração e perpetuação do poder, por um lado, porque, já dizia K. Popper, os governos são intrinsecamente maus, razão porque, aliás, a alternância se dá.
Vive-se, pois, um declínio democrático em Cabo-Verde, com a agravante de que, muito acentuadamente, e contrariamente ao que previa um J.S. Mill, o envolvimento na política não tornam as pessoas mais inteligentes, mais atentas ao bem comum, mais educadas e nobres. Tinha, e tem razão, sim, J. Schumpeter, que dizia que quando se entra na política o cidadão se transforma num primitivo. Porque, afinal, a democracia também “incentiva a que a maioria dos votantes tome decisões políticas de um modo ignorante e irracional. E, consequentemente, impondo essas mesmas decisões ignorantes e irracionais aos inocentes.
Finalmente, porque a política entre nós, tem afastado ou ameaça afastar da sua esfera o ideal de amizade cooperante. Que político alguma vez disse para o seu adversário, no final de um acalorado debate: “Obrigado por me ter libertado do erro. Vamos fazer as coisas à sua maneira!”
A política em Cabo-Verde tende a fazer-nos odiar-nos uns aos outros, a dividir-nos entre os bons e os maus. Tende a favorecer o chamado “argumento do ridículo”. AI SE O RIDÍCULO MATASSE! Lembram-se?
Em suma, no nosso país, o autoritarismo não acabou. Perpetua-se como um “morto-vivo”.
Praia, 18. agosto. 2024
santosjfb@gmail.com