Por: Luís Kandjimbo**
As ideias que aqui trazemos à conversa conformam uma síntese do pensamento crítico de Ambroise Kom, (na imagem), que resulta da leitura do seu livro: «Le Devoir d’indignation. Éthique et esthétique de la dissidence» (O Dever de Indignação. Ética e Estética da Dissidência), 2012.
De acordo com o nosso quadro periodológico e geracional da crítica literária africana, a Escola Meloniana de Yaoundé, além do legado, tem os seus epígonos. É sobre um dos discípulos de Thomas Melone (1934-1996) que proponho a presente conversa, na sequência da reflexão que lhe dediquei na semana passada.
Apesar de ser uma figura proeminente da crítica literária camaronesa, Ambroise Kom representa, igualmente, o universo dos epígonos de um outro vulto do pensamento africano, o filósofo camaronês Fabien Eboussi-Boulaga (1934-2018). A organização da obra colectiva em homenagem a este filósofo é uma prova disso.
Como referi, Ambroise Kom é um crítico e professor universitário camaronês que foi aluno de Thomas Melone na Universidade de Yaoundé, pertencendo, por isso, à terceira geração de críticos literários Africanos. É fundador da Universidade des Montangnes, situada em Bangangté, uma província do oeste dos Camarões.
Discípulo de Thomas Melone
Originário da região noroeste dos Camarões, Ambroise Kom (Bayangam, 1946), iniciou os estudos na então Universidade Federal dos Camarões, em finais dos anos 60. É especialista em literaturas africanas e das diásporas afrodescendentes da América e Caraíbas. Obteve a sua formação doutoral em França, onde defendeu sucessivamente a tese de doutoramento de 3º ciclo sobre o Harlem e o escritor norte-americano Chester Himes na Universidade de Pau, em 1975. A versão em livro foi publicada no Canadá, quatro anos depois, com o prefácio do seu mestre, Thomas Melone. Por sua vez, a tese de doutoramento de Estado sobre o escritor George Lamming, defendida na Universidade de Paris III, em 1981, publicada em 1986.
Nos Estados Unidos da América leccionou Literaturas Africanas, Literatura Afro-americana e Literatura das Caraíbas, enquanto titular da cátedra Eleanor Howard O’Leary em estudos francófonos no College of the Holy Cross (Worcester). Seguidamente, exerceu a docência no Canadá, Marrocos e Camarões.
Pode ser útil saber que a sua especialização em estudos afro-americanos ocorreu devido a um acaso. Encontrava-se em França a preparar o doutoramento, quando foi confrontado com a circunstância de o orientador francês não ter qualificações em Literaturas Africanas. Foi ele que o aconselhou a preparar uma tese sobre Literatura Afro-americana, como se dizia na época.
O conhecimento que tinha obtido em Yaoundé, durante a licenciatura, permitiu que a sua opção recaísse sobre a obra de Chester Himes. Concluído o doutoramento, o referido orientador intercedeu para a celebração do contrato que o levaria à Brown University. Por mais de uma década, Ambroise Kom trabalhou nos Estados Unidos da América.
Além de ensaios como «La malédiction francophone: défis culturels et condition postcoloniale en Afrique» (A Maldição Francófona: Desafios Culturais e Condição Pós-colonial em África), 2000, coordenou várias obras colectivas, entre as quais: «Dictionnaire des œuvres littéraires de langue française en Afrique au sud du Sahara» (Dicionário de Obras Literárias em Língua Francesa na África ao Sul do Sahara), 2001
Sociocrítica
O método comparado, cultivado pela Escola Meloniana, é retomado por Ambroise Kom nos seus estudos da obra literária de norte-americano Chester Himes (1909-1984) e do escritor barbadiano George Lamming (1927-2022). Pode dizer-se que, na segunda metade da década de 70 do século XX, Ambroise Kom valorizava o sentido operatório do conceito de África Global, aplicando-o na sua hermenêutica das Literaturas Africanas e Literaturas das Diásporas Afrodescendentes.
Quando em 1984 regressou ao país, Ambroise Kom passou a integrar o corpo docente do Departamento de Literaturas Africanas da Universidade de Yaoundé. Perante a competição com os Departamentos de Francês e Inglês, que ofereciam cursos de «literaturas clássicas fundamentais», adoptou metodologias de ensino orientadas para a sociocrítica, isto é, abordagens sociológicas com o propósito de desvendar a «evolução e o funcionamento das sociedades dos textos». Ministrou aulas e desenvolveu pesquisas sobre instituições literárias, e sobre o tema da loucura na narrativa africana.
Ambroise Kom inspirava-se nos ensinamentos de Thomas Melone. No contexto institucional académico, movia-lhe o interesse de produzir um discurso crítico sobre acontecimentos endógenos. Por isso, o tema do exílio era frequentemente revisitado nos seus trabalhos sobre a obra de Mongo Beti (1932-2001). Apesar da vigilância policial de que foi sendo objecto, devido à correspondência que mantinha com o escritor dissidente, autor de «O Pobre Cristo de Bomba», promoveu iniciativas que estiveram na origem do regresso definitivo de Mongo Beti, em 1991.
Intelectuais, literatura e ideias
Em 2004, Ambroise Kom reflectia sobre a história das ideias, uma década após a independência. Produziu textos que permitem compreender a diversidade de perspectivas palpitantes nos meios académicos dos Camarões. Donde é possível perceber o alcance da insinuada conotação com a negritude senghoriana a que se associava o nome de Thomas Melone. A amizade pessoal entre o professor camaronês e o presidente senegalês era uma das razões.
Por outro lado, o presidente Ahmadu Ahidjo (1924-1989), procurava legitimidade intelectual no prestígio de Léopold Senghor (1906-2001). A aproximação à universidade e aos académicos era instrumental. Assim se explica que os debates sobre a negritude constituíssem uma referência importante nos círculos do poder. Vale recordar os contradiscursos do crítico literário Jean-Marie Abanda Ndengue, que preferia o termo «negrismo» para designar a negritude senghoriana e do filósofo Basile-Juleat Fouda (1934-2020) que a denominava por «negridade», numa tradução mais correcta do sentido da palavra em francês.
O tema da etnicidade animava igualmente os debates filosóficos e literários. Por ocasião, de um simpósio realizado na Universidade de Yaoundé, em 1987, Mono Ndjana, filósofo e intelectual orgânico ligado ao poder, escrevia o seu libelo, «Do Etnofascismo na Literatura Camaraonesa». A réplica veio de um outro filósofo, Sindjoun-Pokam, que publicou um opúsculo com o seguinte título: «A Filosofia Política Traída: O Monofascismo».
O processo de democratização e a vaga das conferências nacionais soberanas impulsionavam o debate sobre o «papel discreto dos intelectuais na sombra». A este propósito, Ambroise Kom reporta-se às análises do filósofo Fabien Eboussi-Boulaga, autor de «Les Conferénces nationales en Afrique Noire: une afffaire à suivre» (Conferências Nacionais em África: Um Assunto para Acompanhar), 1993.
Por outro lado, o espectro da cooptação política e a tentação da militância partidária pairavam sobre as cabeças dos escritores, filósofos e críticos literários que combatiam pela democratização. Em qualquer um dos casos, o desfecho foi sempre a desilusão dos intelectuais. A certa altura, os intelectuais que não pertenciam ao partido no poder, tais como Jean-Marc Ela (1936-2008) e Fabien Eboussi-Boulaga, foram sendo lentamente marginalizados, submetidos ao ostracismo, sem trabalho e sem subsídios para efectuar pesquisas.
Os que cultivavam a militância partidária, acabaram por abandoná-la. Tal como ilustra Ambroise Kom, é o que aconteceu com o jurista Maurice Kamto, o escritor Mongo Beti, o economista Celestin Monga, o advogado Bernard Muna (1940-2009) e o crítico literário Siga Asanga, após a sua filiação à Frende Democrática Social (SDF), partido da oposição de John Fru Ndi, fundado em 1990, na cidade de Bamenda, situada na região noroeste onde se fala inglês.
Chester Himes, racismo e crime
Ambroise Kom pode ser considerado especialista de dois escritores Afrodescendentes, o norte-americano Chester Himes, figura do movimento «Harlem Renaissance», que com uma vasta obra constituída por mais de uma dezena de títulos, ganhou notoriedade na Europa, e o ficcionista, poeta e ensaísta barbadiano, George Lamming.
O discípulo de Thomas Melone não tem dúvidas acerca desse diálogo interatlântico da África Global. Revela um particular interesse pelo estudo do modo como se produzem as influências sobre escritores Africanos, especialmente de personagens, topografias dos subúrbios norte-americanos como o Harlem e sua inscrição no romance policial de Chester Himes.
Procura identificar os sinais dessas «fraternidades literárias do mundo negro», que datando das duas primeiras décadas do século XX, são observáveis na obra literária dos camaroneses Simon Njami, em «Cercueil et Cie» (Caixão e Companhia), 1985, e Mongo Beti, em «Trop de Soleil Tue l’Amour» (Muito Sol Mata o Amor), 1999. De igual modo, no congolês Bolya, «La Polyandrie» (A Poliandria), 1998.
Para Ambroise Kom, a fraternidade literária que se estabelece entre Chester Himes e os escritores Africanos tem na sua intersecção o «modelo artístico cativante e eficaz» que se verifica através da tematização do racismo, enquanto efeito da escravização dos Africanos e do colonialismo.
No romance de Simon Njami a intertextualidade manifesta-se claramente na tipificação das aventuras do herói. Já em «A Poliandria» está-se perante uma narrativa que privilegia o crime. Relativamente ao romance «Muito Sol Mata o Amor» de Mongo Beti, Ambroise Kom sublinha as ressonâncias de um romance policial que veicula a «crítica da sociedade africana pós-colonial», onde triunfam «a fraude, a corrupção, a prostituição e a insegurança». Quanto a mim, esse diálogo intertextual convoca uma interpretação que deve ser suportada por um sólido conhecimento das estéticas pan-africanistas, tal como poderemos constatar nas propostas de metodológicas de Abiola Irele (1936-2017).
A consciência histórica barbadiana
George Lamming é ensaísta, poeta e autor de obras de ficção narrativa, designadamente, «In the Castle of My Skin» (No Castelo da Minha Pele), 1953; «The Emigrants» (Os Emigrantes), 1954; «Of Age and Innocence» (Da Idade e Inocência), 1958; «The Pleasures of Exile», (Os Prazeres do Exílio), 1960; «Natives of My Person» (Nativos da Minha Pessoa), 1972; «Water with Berries» (Água com Frutas), 1971, e «Selvon in Moses Ascending» (Selvon em Moisés Ascendente), 1975.
A consciência histórica a que Ambroise Kom se refere na sua tese de doutoramento, «George Lamming et le destin des Caraïbes» (George Lamming e o Destino das Caraíbas), e em textos posteriores, é traduzida pelo próprio escritor barbadiano, quando afirma o seguinte: «A África existe em Barbados e em todo o Caribe, e se recusou sempre a ser enterrada pelas instituições que procuravam torná-la impotente e vazia de qualquer força espiritual. Escola, igreja, a linguagem e o ritual dos tribunais ingleses, os mistérios do parlamento: tudo isso tinha de ser aprendido no interesse da sobrevivência e promoção social dos negros. Mas a África permaneceu como uma fonte de constrangimentos aqui, embora a natureza real desses constrangimentos possa ter mudado.»
A imagem dessa África eterna ocupa efectivamente um lugar especial no discurso de George Lamming. No entanto, chamo a atenção para a posição que lhe é atribuída no campo da ensaística literária das Caraíbas, em geral. Em «The Pleasures of Exile» (Os Prazeres do Exílio), o ensaísta barbadiano recupera a problematização dos temas do exílio, da emigração, do diálogo Mesmo/Outro, através da sempre controversa relação metafórica entre Próspero e Caliban, personagens da peça «The Tempest» (A Tempestade) do inglês William Shakespeare (1564-1616). Com a sua abordagem George Lamming suscita o problema da língua e da identidade no contexto colonial.
O tratamento que George Lamming dá à transversal experiência histórica africana, permite que Ambroise Kom tenha em conta a advocacia do ensaísta barbadiano, fundada nessa indelével presença cultural e na necessidade de peregrinação dos filhos das diásporas ao continente africano com a finalidade de regeneração.
Num registo actualizado no livro proporcionado pelo livro que estamos a ler, Ambroise Kom não deixa de seguir a pegadas de George Lamming, ao trazer a debate a questão, ainda candente, dos «parâmetros do cânone» nas Literaturas Africanas. Por essa razão, voltaremos ao tópico com a apreciação do pensamento de Abiola Irele sobre as teorias estéticas pan-africanistas.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 16 de Setembro, aqui republicado com a autorização do autor.
**Ensaísta e professor universitário