Por: Germano Almeida
José Maria Neves, “simplesmente” ele enquanto cidadão nacional, usou o seu direito de exprobar, na sua página do FB, o comportamento de não se sabe que pessoa ou entidade pública com poder de “quero, posso e mando”, que mandou afastar o eng. Espírito Santo Fonseca da condição de comentador dominical da Televisão de Cabo Verde.
Chocado e inconformado com o que aconteceu (esse brusco e inesperado afastamento de um programa de televisão ainda mal iniciado), José Maria Neves não se coíbe, e com ímpeto justiceiro lança esse grito de indignação e espera que quem de direito esclareça publicamente este imbróglio.
Bem, certamente que o cidadão JMN pode esperar sentado. Ou mesmo deitado! Jamais terá qualquer resposta a este ato de uso/abuso de exercício do poder. Nem ele nem nenhum dos outros muitos cidadãos que mostraram a sua indignação por essa afirmação despudorada que mais pareceu de cobardia que de poder. Se ninguém, nenhum outro cidadão, alguma vez até hoje obteve resposta a algum questionamento ao poder em exercício, porque os atuais ofendidos obteriam?
Mas permito-me pensar e dizer que a questão não se resume a uma episódica censura da pessoa do Espírito Santo, ainda que seja da História que as revoluções tendem a matar os seus pais. Creio antes que se trata da instalação de um sistema político que visa destruir tudo que se assemelhe a oposição, pela via de um instituto próximo do banimento que existia na Africa do Sul no tempo do apartheid. Só que aqui o banimento não é declarado publicamente, não é assumido, simplesmente é tacitamente decretado e posto em prática contra todos aqueles ousam molestar o poder constituído.
É bom ver nomes como José Maria Neves a levantar-se contra os desmandos do poder atual. Sobretudo porque foi secundado por muitas outras vozes clamando contra uma comunicação social do Estado que devia estar ao serviço geral e afinal está a soldo de alguns dirigentes de um partido, neste caso o MPD. No entanto, não posso deixar de lamentar que tanto tenham adiado essa há muito necessária tomada de posição.
Não posso deixar de pensar que se tivessem começado a ver há mais tempo as ilegalidades e abusos do poder que se estava e continua estando a praticar no país, particularmente, desde há dois anos a esta parte, quando esses desmandos do poder começaram a acentuar visivelmente, a mostrar não se tratar de simples episódios isolados e inconsequentes, mas antes de uma política deliberada, concebida e levada à prática de forma sistemática, com vista a sequestrar e aprisionar o poder a favor de um pequeno grupo, aqui sim, sem djobé pa lado, dizia que se os que agora protestam tão veementemente tivessem desde há mais tempo começado a denunciar os desmandos do poder, é bem provável que alguma vergonha os tivesse feito conter.
Infelizmente isso não se verificou. O processo montado contra o deputado Amadeu Oliveira, um deputado de um país que passamos o tempo a vender ao mundo como sendo um estado de direito democrático, é um dos processos mais vergonhosos acontecidos em Cabo Verde e perante o qual o processo da reforma agrária não passa de uma brincadeira. E que por isso mesmo justificava uma tomada de posição da parte de cidadãos amantes do seu país.
Vale a pena lembrar que um deputado foi pelos seus pares entregue ao poder judicial e foi metido na cadeia. Essas pessoas que agora protestam pelo que fizeram ao Espirito Santo Fonseca, considerado como um ataque à democracia, todas elas sabem que um deputado não pode ser assim preso, ele está legalmente rodeado de garantias que o defendem de represálias e abusos de poder enquanto deputado nacional.
Porém, no caso concreto desse deputado, todos parecem estar de acordo com o presidente da Assembleia Nacional, quando, num dia 13 de janeiro, chamado dia da liberdade e da democracia, ele se permitiu dizer, desde o alto do seu poder parlamentar, que esse deputado precisava ser contido. Portanto, todos aceitaram que essa contenção deveria ser efetivada, mesmo violando a Constituição, como estava sendo. Por isso ninguém disse nada.
A seguir vimos um juiz desembargador cometer aberta e despudoradamente um crime de prevaricação, mandando preso um deputado, sem que primeiro ele tivesse sido pronunciado por um qualquer crime. Talvez todos tenham aceite que tudo isso, todas essas flagrantes ilegalidades, fizessem parte da necessidade de continuar a conter esse deputado irrequieto, e continuou-se calado, mesmo quando ele foi sentenciado a sete anos de prisão pelo absurdo crime de atentado ao estado de direito democrático.
Porém, surpreende, para não dizer que branda aos céus, que esses cidadãos com grandes responsabilidades enquanto reserva do país (Neves foi primeiro-ministro por três mandatos, Espirito Santo foi deputado, presidente da Assembleia Nacional e provedor de Justiça), tenham continuado calados e ausentes quando o Tribunal Constitucional cometeu a suprema ignomínia de declarar e decretar que um chamado “costume”, não só inexistente como costume, mas também expressamente contra preceito da Constituição, era competente para derrogar uma norma constitucional.
A gravidade desse facto justificava uma tomada de posição da parte desses caboverdianos que temos como ilustres e intervenientes, sobretudo porque ninguém precisa ir à escola para ver que esse írrito acórdão apenas visou “proteger” o Parlamento na malfadada decisão de entregar um deputado à Justiça, diante da urgente necessidade de ele ser “contido” através da sua imediata prisão. E esse acórdão é tanto mais grave, quanto é certo que se configura como um desbragado ataque à soberania nacional, porque é um verdadeiro atentado a qualquer estado de direito, seja ou não democrático, levado a cabo em nome de uma instituição que tem o particular dever de nos defender das opressões do poder.
No entanto, o que se verificou foi o conluiar do órgão máximo do poder judicial com o órgão máximo do poder legislativo para fabricar uma tese que ofendeu todos que entendem o direito como conjunto de normas que enformam uma sociedade que nelas se reconhece, e não simples instrumento de afirmação de poder para uns tantos.
E daí que teria sido muito excelente que esses caboverdianos, que são vozes nacionais com opiniões respeitáveis, tivessem mostrado, através da sua palavra franca e aberta, discordar do absurdo beco sem saída a que o Tribunal Constitucional tinha conduzido o país.
Porém, preferiram não o fazer, não querendo provavelmente se darem conta de que estamos sendo governados por uma oligarquia que usa a palavra democracia como uma bandeira hasteada ao vento, mas ignora a sociedade com desprezo verdadeiramente olímpico.
Porém, o mais grave é que essa oligarquia, nascida no seio do MPD, alargou-se despudoradamente e hoje parece já ter o beneplácito de grandes franjas do que deveria ser uma saudável oposição, como se constata pelo teor do esforçado acórdão votado por uma inconcebível unanimidade de juízes, e que não teve outra função prática para além de branquear e dar laivos de legalidade a uma flagrante ilegalidade do Parlamento. Bem, de caminho abençoou a manutenção da prisão do deputado.
Ora contra esses desmandos se contava com as vozes dos senadores da República. Aquietaram-se, porém, sob pretexto da independência dos tribunais e separação de poderes. Um erro crasso e de palmatória, porque os tribunais e os juízes não são mais do que emanação da sociedade em que vivemos e qualquer de nós é capaz de reconhecer uma decisão judicial injusta.
Temo-nos calado por tempo demais. Mas pode ser que finalmente estejamos a despertar desta longa hibernação.