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Para uma história da interpretação literária em África: Críticos literários do século XX: Thomas Melone – VI*

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Por: Luís Kandjimbo**

No artigo anterior, referi-me ao campus de Lubumbashi da Universidade Nacional do Zaire, actual República Democrática do Congo, como um dos epicentros académicos africanos mais dinâmicos, na década de 70 do século XX. 

Mas, na África Central, a Universidade de Yaoundé era, em termos relativos, o pólo intelectual e cultural mais importante que competia com as universidades de Dakar, Ibadan e Makerere. No campo da crítica literária, foi em Yaoundé que se desencadearam experiências do comparativismo literário inter-africano. Encontrava-se lá Thomas Melone, (1934-1996), um dos seus pioneiros, que vemos na imagem. 

Não é necessário consultar manuais ocidentais de Literatura Comparada, onde se podem ler referências ao facto, para compreender as motivações dos críticos que iniciaram essa aventura científica e intelectual no nosso continente. 

Efectivamente, a institucionalização académica do comparativismo literário ocorreu na Universidade de Yaoundé em 1969, quando o professor Thomas Melone tomou a iniciativa de criar o Departamento de Literatura Negro-Africana Comparada. Já falei dele no artigo que dediquei às relações literárias internacionais e em outro sobre o crítico literário Nouréini Tidjani-Serpos. A reflexão de hoje vai centrar-se nas ideias e propostas metodológicas desenvolvidas pelo mais representativo membro da Escola Meloniana, tal como a denominou o crítico literário beninense.

Perfil biográfico de Thomas Melone

Filho de um casal com origens étnicas distintas, Beti e Bassa, Thomas Melone nasceu na região litorânea camaronesa de Sanaga, em 23 Dezembro de 1934. Após os estudos primários na Missão Católica de Edéa e frequência do seminário menor de Akono, concluiu o ensino secundário em 1956, no Liceu Général Leclerc de Yaoundé. 

Estudante universitário em França

Quando em 1960, a República Federativa dos Camarões se tornou independente, Thomas Melone era estudante universitário em França. Obteve a licenciatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Grenoble, um ano depois. Nessa altura, iniciou a sua vida profissional como professor, nas cidades de Grenoble, Chartres e Vincennes. Prosseguiu o exercício da docência, ao ter sido contratado como Assistente na Escola Normal Superior de Yaoundé, por um ano. Interrompe o início da carreira, após a atribuição de uma bolsa de estudos da UNESCO. Visitou vários países, designadamente, a Suíça, a Bélgica, os Estados Unidos da América, o Brasil, o Mali e a Nigéria. 

Autoridade científica

Defendeu a sua tese de doutoramento de Estado na Universidade de Grenoble, em 1969. Regressou ao seu país de origem e retoma a docência, assumindo a chefia do Departamento de Literatura Comparada Africana da Universidade de Yaoundé, entre 1971 e 1974. Por razões de ordem política, abandonou os Camarões. Exilou-se em França, onde continuou a dedicar ao ensino na Universidade Sorbonne. 

A sua autoridade científica tomou forma com uma obra que conformava as bases da sua crítica da negritude: 1) «Négritude dans la littérature negro-africaine», (Negritude na Literatura Negro-Africana), 1962; 2) «Mongo Beti: L’homme et le destin» (Mongo Beti: O Homem e o Destino), 1971; 3) a versão da sua tese de doutoramento, «Chinua Achebe et la tragédie de l’histoire» (Chinua Achebe e a Tragédia da História), 1973. Os três livros têm a chancela da editora pan-africana «Présence Africaine. 

Docência e perigos políticos

Ambroise Kom é um crítico e professor universitário camaronês que foi aluno de Thomas Melone na Universidade de Yaoundé, pertencendo, por isso, à geração seguinte de críticos literários. No testemunho por si prestado, confessa que a frequência das aulas do professor Melone foi a oportunidade para a descoberta da literatura camaronesa, escrita em língua francesa e a leitura de autores como Mongo Beti (1932-2001) e Ferdinand Oyono (1929-2010). 

Tudo começou em 1967.  O professor Thomas Melone tinha acabado de chegar de Paris. Era o único que ensinava Literaturas Africanas e, ao mesmo tempo, veiculava um pensamento contra a ditadura pós-colonial de Ahmadou Ahidjo (1924-1989), presidente dos Camarões. No dizer de Ambroise Kom, «pessoas como Melone eram consideradas mais ou menos perigosas para a mente dos jovens, porque ele era um professor que transmitia esse pensamento crítico a seus alunos». 

Por isso, Thomas Melone foi forçado a abandonar a carreira docente. Já se encontrava fora do país, quando se realizou o Colóquio sobre Literatura e Crítica Literária dos Camarões, em 1977. O professor Francis Mbassi Manga era Decano da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade de Yaounde. De regresso ao país natal, não voltou aos corredores da universidade. Passou a dedicar-se à pesca de tilápia (kakusu), na localidade de Edéa, situada na região onde nasceu.

Durante os últimos anos da sua vida, dedicou-se à actividade política. A reputação que gozava antes do exílio começou a ser posta em causa. Isso devia-se ao facto de ter sido cooptado pelo partido do presidente Paul Biya. Por isso, chegou a deputado à Assembleia Nacional, em 1988. De 1992 a 1996, manteve-se no parlamento pelo partido União das Populações dos Camarões (UPC) com o qual tinha vínculos desde os tempos de estudante. No ano da sua morte, faleceram outros eminentes intelectuais camaroneses, o teólogo Engelbert Mveng (1930-1995), barbaramente assassinado na sua residência e o antropólogo Dika Akwa Nya Bonambela (1933-1995) que tinha passado pelas masmorras do como preso político.

Thomas Melone

Conotação com a negritude 

Na década de 60 do século XX, o nome de Thomas Melone era conotado com a negritude política quando, na Universidade de Yaoundé, organizou o debate que teve como orador o poeta e presidente do Senegal, Léopold Senghor (1906-2001), e como convidado, o presidente dos Camarões, Ahmadu Ahijo. Parecia ser beneficiário de um alto patrocínio político. A recorrente tematização da teoria crítica do poeta senegalês Léopold sugeria uma eventual empatia do discurso crítico de Thomas Melone. Por essa razão, travou intensos debates com outros intelectuais camaroneses. Ao filósofo Marcien Towa (1931-2014), o principal oponente da negritude nos Camarões, juntavam-se-lhe outros, tais como crítico literário Jean-Marie Abanda Ndengue, que preferia o termo «negrismo» para designar a negritude senghoriana e o filósofo Basile-Juleat Fouda (1934-2020) que a denominava por «negridade». O jornal «Cameroun Littéraire» e a revista «Abbia: Revue Culturelle Cameroonaise» eram as tribunas de uma boa parte desses debates. 

Tarefa do critico 

Essa conotação representava um equívoco porque, na sua tese de doutoramento, ele considerava que à «Escola da Negritude», opunha-se a «Escola da Personalidade Africana», de que eram tenores o escritor nigeriano Chinua Achebe (1930-2013) e o ensaísta sul-africano Ezekiel Mphahlele (1919-2008). A primeira é dominante nos países africanos que têm o francês como língua oficial e a segunda é dominante no espaço africano em que se faz uso da língua inglesa.  Para lá das clivagens, Thomas Melone entendia que, em qualquer uma dessas escolas era possível identificar uma profunda harmonia, no que diz respeito à reafirmação dos valores africanos essenciais e sua inserção no tesouro universal dos valores humanos.

Do ponto de vista metodológico Thomas Melone cultivava uma forte crença nos postulados teóricos que defendia. Este é o sentido do que era dado a ler, num seminal artigo de 1968. No seu entender, «a tarefa do critico, por se pretender técnica e criativa, situa-se a um outro nível. O que é imposto ou sugerido pela problemática da linguagem, quer dizer da estrutura profunda da obra». Considerava que «o objectivo (…) é apresentar ao público mundial as obras mais significativas da nossa literatura assente na nossa própria sensibilidade estética, da nossa própria avaliação das civilizações negro-africanas, da nossa própria visão do devir africano».

A história do ensino e da investigação das Literaturas Africanas na Universidade de Yaoundé deve muito ao professor Thomas Melone. Além da criação do Departamento de Literatura Negro-Africana Comparada, coordenava o Grupo de Pesquisas em Literatura Comparada. Esteve ligado à edição do «Cahier de littérature et linguistique appliquée» (Caderno de Literatura e Linguística Aplicada), publicado em 1970. Ao Colóquio de Yaoundé apresentou uma comunicação que permitia reiterar o seu interesse pelas teses de Léopold Senghor. O título é elucidativo: «De la topologie a la typologie: Y a-t-il une théorie critique chez Lépold Senghor?» (Da Topologia à Tipologia: Existe alguma Teoria Crítica em Léopold Senghor?).

Comparativismo literário inter-africano

As motivações do comparativismo literário de Thomas Melone estão subjacentes à sua interpretação das teorias que a «Escola da Negritude» e a «Escola da Personalidade Africana» representam no campo da crítica literária africana. Parece excessiva a avaliação negativa do norte-americano, John Decock, que considerava «avassaladora e imperdoável a ignorância ou falta de interesse pelo que está a ser feito em Ibadan, Dakar ou Argel sobre as mesmas questões ao mesmo tempo». Para todos os efeitos, reconhece os seus méritos, por se tratar de «uma obra excepcional em todos os sentidos, para um diálogo literário e metodológico pan-africano». 

Na verdade, quando se lê o referido livro, compreende-se o alcance do princípio que Thomas Melone enunciou no artigo de 1968, segundo o qual compete ao crítico literário Africano a apresentação das obras mais significativas das literaturas africanas, fundada em sensibilidade estética, avaliação das civilizações negro-africanas e visão do devir africano. 

Os estudos do Grupo de Pesquisas em Literatura Comparada da Universidade de Yaoundé, reunidos na colectânea intitulada «Mélanges Africains» (Miscelâneas Africanas) impressionaram o ensaísta e crítico literário francês, Roger Caillois (1913-1978), o redactor-chefe da revista «Diogène». De modo que a edição nº 80 de 1972 foram publicados cinco artigos assinados pelos membros da referida equipa com o seguinte título «La Littérature Africaine a l’Âge de la Critique» (As Literaturas Africanas na Idade da Crítica). 

Negritude e Personalidade Africana  

Invoquei a possibilidade de equívocos a respeito da empatia evidenciada por Thomas Melone, quando procurava encontrar com isenção os méritos das referidas escolas da Filosofia da Literatura no contexto da África Global, a «Escola da Negritude» e a «Escola da Personalidade Africana». É necessário analisar as propostas de leitura que Thomas Melone formula na sua comunicação ao Colóquio de Yaoundé. Ao indagar-se acerca da topologia das teses críticas de Léopold Senghor, cuja síntese está vertida no seu livro publicado em 1988, Thomas Melone conclui que efectivamente o poeta senegalês formula uma teoria suportada pela articulação de um método, apoiada por uma perspectiva de conhecimento integral do continente africano. 

A «qualidade da teoria crítica» de Senghor, sustenta Thomas Melone, pode ser determinada pelos pressupostos ideológicos da autonomia e tensões de uma racionalidade crítica.  De resto, Senghor define a negritude como «o conjunto dos valores da civilização negra (…) uma certa maneira de ser homem, sobretudo de viver como homem (…). Mas Thomas Melone concluía que a teoria de Senghor ancorada a essa definição é demasiadamente geral. Do ponto de vista prático, aplica-se apenas ao seu próprio discurso poético. Por isso, não permite abordar os problemas que se colocam a outras obras literárias africanas.

Por outro lado, as repercussões da leitura e interpretação dos romances de Chinua Achebe, bem como a avaliação da qualidade da teoria crítica de Léopold Senghor propiciam oportunidades de diálogo entre Thomas Melone e Abiola Irele (1936-2017), um outro clássico da crítica literária e do comparativismo literário inter-africano. Neste sentido, julgo que é útil examinar a grelha de operacionalização dos conceitos de negritude e personalidade africana na Filosofia da Literatura. O crítico literário nigeriano não concorda com a perspectiva que aponta para o antagonismo irremediável entre a «Escola da Negritude» e a «Escola da Personalidade Africana». Por essa razão, não parece ser má decisão, a de sondar o sentido das ideias de Abiola Irele em «In Praise of Alienation» (Elogio da Alienação), conferência proferida em 1982, mas que mantém ainda o vigor para debates relevantes neste domínio. 

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 09 de Setembro, aqui republicado com a autorização do autor.

** Ensaísta e professor universitário

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