Por: Luís Kandjimbo**
A actividade crítica e hermenêutica de Ernest Emenyonu (Mbieri, Estado de Imo, 1939), que vemos na imagem, será hoje o motivo da conversa.
Conheci esse eminente professor nigeriano no Congresso de Dakar da Associação de Literaturas Africanas, em 1989. Voltei a encontrá-lo na cidade de Nsukka, durante as celebrações do sexagésimo aniversário de Chinua Achebe (1930-2013), realizadas em 1990, na Universidade da Nigéria, situada no Estado de Anambra.
Identidade Igbo
A história da interpretação literária e dos sujeitos que a sustentam em África tem sido o tópico que venho propondo, há três semanas. Trata-se de uma matéria que continua a suscitar interrogações de leitores e especialistas incrédulos, em todo o mundo.
A negação tem vindo a dar lugar à certeza de que as literaturas, suas leituras e críticas são práticas civilizacionais comuns em todas as comunidades humanas, sem excepção. As circunstâncias em que parecem existir «menos avançados» e «mais avançados» são uma mera contingência histórica.
Portanto, a existência de críticos literários Africanos e, consequentemente, de pensamento crítico sobre as Literaturas Africanas exprime o exercício de uma soberania e a produção secular das civilizações africanas.
A referência ao nome do crítico nigeriano Ernest Emenyonu ocorreu no artigo anterior, ao ter mencionado, a título de exemplo, os cultores do discurso «especificitário», uma corrente que, na definição de Nouréini Tidjani-Serpos, se distingue pela prática de um discurso crítico preocupado com a «especificidade negro-africana» do romance africano, mas igualmente de outros géneros literários inspirados nos modelos ocidentais.
Apesar de Ernest Emenyonu ser originário do Estado de Imo, foi em Nsukka onde iniciou os seus estudos superiores. Como veremos mais adiante, tem relevância saber que, do ponto de vista linguístico e cultural, essa região está integrada na chamada Igbolândia. Hoje, dela fazem parte outras unidades políticas federais, tais como Abia, Akwa-Ibom, Cross-River, Bayelsa, Delta, Enugu, Ebonyi e Rivers. A sua população é maioritariamente pertencente à comunidade étnica Igbo. Na história política da Nigéria e da Guerra Civil Nigeriana, corresponde ao território secessionista do Biafra, a partir do qual, durante três anos (1963-1967), as elites políticas do Sudoeste e o exército separatista, representando uma parte do conflito armado, combateram contra as autoridades do governo militar instalado em Lagos.
Especialista e professor emérito
Ernest Emenyonu é um distinto crítico literário e professor de Estudos Africanos e Literaturas Africanas. Membro da Academia Nigeriana de Letras e da Academia Nigeriana de Educação, cultiva um especial interesse pelas Literaturas em Línguas Nacionais, com particular interesse pela Literatura Oral Igbo da Nigéria.
A sua formação universitária decorreu durante a década de 60 do século XX. Começou na Universidade da Nigeria, Nsukka (1960-61). Seguidamente, frequentou as universidades de Columbia, Nova York, Londres e finalmente a Universidade de Wisconsin, Madison, nos Estados Unidos da América (1968-70), onde obteve o Doutoramento em 1972, sob a orientação do professor marroquino Edris Makward.
Iniciou a sua carreira académica nos Estados Unidos da América, leccionando Estudos Ingleses e Afro-Americanos, na Universidade do Colorado. Regressou à Nigéria para se dedicar ao ensino de inglês na Escola Superior de Educação de Alvan Ikoku, Owerri (1975-80). De 1980 a 1990, foi, sucessivamente, Chefe de Departamento de Estudos Ingleses e Literários, Decano da Faculdade de Letras e Vice-Chanceler da Universidade de Calabar na Nigéria.
No exercício de cargos de liderança na Universidade de Calabar, foi responsável pela criação da Conferência Internacional Anual de Calabar sobre Literaturas Africanas e Língua Inglesa com o objectivo de promover o intercâmbio de escritores e críticos Africanos, atraindo outros investigadores para um diálogo inter-civilizacional. Presentemente, Ernest N. Emenyonu é Professor Emérito de Estudos Africanos na Universidade de Michigan–Flint, nos Estados Unidos da América.
Produção crítica
A produção crítica de Ernest N. Emenyonu distribui-se por diferentes géneros ensaísticos, nomeadamente, o ensaio crítico sobre o desenvolvimento da ficção literária moderna e o ensaio biográfico, destacando-se os dedicados aos escritores nigerianos de origem Igbo, Chinua Achebe e Cyprian Ekwensi (1921-2007). Ao longo de décadas foi editor da «African Literature Today», uma das mais antigas revistas especializadas no mundo das literaturas africanas.
É autor de artigos em revistas especializadas, capítulos em obras colectivas antologias e organizou edições críticas sobre Literaturas Africanas, além de livros de contos e literatura infantil. Publicou: Emerging Perspectives on Nawal El Saadawi [Perspectivas Emergentes sobre Nawal El Saadawi ], (2010); «Emerging Perspectives on Chinua Achebe», [Perspectivas Emergentes sobre Chinua Achebe], (2004); «Goat Skin Bags and Wisdom: New Critical Perspectives on African Literature» [Sacos de Pele de Cabra e Sabedoria: Novas Perspectivas Críticas sobre Literaturas Africanas], (2000); «A Good Shepherd: A Biography of the Most Rev. Benjamin C. Nwankiti», [ Um Bom Pastor: Biografia do Rev. Benjamin C. Nwankiti], (2003); «Tales of Our Motherland (short stories)», [Contos de Nossa Pátria], (1999); «Uzo: A Story of African Childhood», [Uzo: Uma Estória da Infância Africana], (2011); «The Literary History of the Igbo Novel. African Literature in African Languages» [História Literária do Romance Igbo. Literatura Africana em Línguas Africanas], (2020).
Romance Igbo
Ernest N. Emenyonu e Emmanuel Obiechina são dois críticos nigerianos que têm obra feita sobre a literatura escrita em língua nacional e a literatura popular da região Igbo. Emmanuel Obiechina publicou um ensaio dedicado à literatura de massas produzida na região de Enugu, «An African Popular Literature. A Study of Onitsha Market Pamphlets» [Uma Literatura Popular Africana. Estudo sobre os Pasquins do Mercado de Onitsha], (1973).
Não deixa de ser um facto histórico-literário curioso, verificar que o escritor nigeriano Ciprian Ekwensi é um daqueles ficcionistas que tem o seu nome associado à Literatura do Mercado de Onitsha. Por sua vez, Ernest Emenyonu assumiu um compromisso de especialização com a sua tese de doutoramento, consagrada ao desenvolvimento do romance Igbo cujo momento genético ocorre em 1933, quando Pita Nwana (1881-1968) publicou o romance «Omenuko». A sua tradução em língua inglesa foi realizada por Emenyonu, em 1972.
No ensaio crítico que é uma versão da sua tese, intitulado «The Rise of the Igbo Novel» [O Surgimento do Romance Igbo], (1978), Ernest Emenyonu definia o romance Igbo como texto narrativo de fôlego escrito em inglês ou na língua Igbo por pessoas de origem ou com ascendência Igbo. O livro não colheu a simpatia de alguns círculos académicos nigerianos, em virtude de trazer à memória alusões implícitas aos motivos da Guerra Civil Nigeriana.
Aquela definição do romance Igbo começou a ser reformulada em 2003, por ocasião da conferência anual da «African Studies Association» [Associação de Estudos Africanos], realizada em Boston, Massachusetts. Ernest Emenyonu reconheceu que com a sua comunicação: «The Present State of Igbo Literature»[A Situação Actual da Literatura Igbo], procedia à redefinição, nos seguintes termos: 1) romance escrito em língua Igbo; 2) transmissão de uma visão mundo da comunidade étnica Igbo, constituída por uma população de mais de 25 milhões de pessoas; 3) romance, total ou parcialmente, escrito por uma pessoa pertencente à comunidade étnica Igbo.
Nova definição
Em «The Literary History of the Igbo Novel. African Literature in African Languages» [História Literária do Romance Igbo. Literatura Africana em Línguas Africanas], Ernest Emenyonu relata situações que testavam a consistência da reformulação. Conta que a nova definição tinha sido igualmente contestada, pelo facto de se revelar mais política do que literária. Apesar disso, suscitava a adesão de jovens investigadores das Literaturas Africanas que em trabalhos académicos tornavam a anterior definição operatória. Por conseguinte, as obras de autores como Chinua Achebe, Cyprian Ekwensi, Chukwuemeka Ike, John Munonye, Elechi Amadi, E.C. Uzodimma, Buchi Emecheta e Ifeoma Okoye, eram classificados como romances Igbo.
Para todos os efeitos, Emenyonu acreditava na força dos seus argumentos e nas provas que os suportavam. Por isso, reuniu uma vasta bibliografia, discografia e filmografia, com as quais se confirma o uso exclusivo da língua Igbo. Daí resultou um acervo constituído por mais de cento e vinte romances, além de mais de cinquenta peças de teatro escritas, dezenas de colectâneas de contos, canções, poesia, biografias, memórias, dicionários, gramáticas, e videoclipe, discos, filmes, etc.
Do ponto de vista analítico, a literatura Igbo é a literatura em língua Igbo. Esta nova definição implicava a ressignificação do que se entende por romance Igbo, permitindo avaliar as contribuições dos escritores Igbo para o desenvolvimento das literaturas africanas em línguas africanas.
Metodologias e polémicas
Em 1971, Ernest Emenyonu travou uma forte polémica com o critico norte-americano Bernth Lindfors. Estava a concluir o seu doutoramento na Universidade de Wisconsin, Madison, nos Estados Unidos da América, quando publicou um artigo na revista «African Literature Today», então editada pelo crítico literário serra-leonense Eldred Durosimi Jones (1925-2020). O título do referido artigo «African Literature: What does it take to be its critic?»[ Literaturas Africanas: O que é preciso para ser seu crítico?], anunciava já a suspeita que devia ser adoptada perante a leitura das confusas abordagens de críticos ocidentais.
Ernest Emenyonu chamava a atenção dos pseudo-especialistas das Literaturas Africanas para a necessidade de recurso a novas ferramentas analíticas, metodologias, padrões e critérios de apreciação estética. Desferia ataques contra o paternalismo ocidental que se manifestava num artigo com o título: «Cyprian Ekwensi – An African Popular Novelist» [Cyprian Ekwensi – Um Romancista Popular Africano], publicado na revista «African Literature Today», em edição de 1969, assinado por Bernth Lindfors, então professor da Universidade do Texas.
Sem recusar as perspectivas ocidentais ou reivindicar qualquer tipo de xenofobia, Ernest Emenyonu entendia que era necessário denunciar o comportamento de arribação subjacente aos discursos críticos que evidenciavam «profunda falta de conhecimento das tradições culturais a que se associa uma ignorância da existência, natureza e complexidade do património das literaturas orais africanas». Considerava que o processo de interpretação e apreciação estética do romance de um escritor como Cyprian Ekwensi exigia o conhecimento da biografia do autor e sua identidade Igbo.
Na sua réplica, Bernth Lindfors revela ter compreendido o alcance das críticas de Ernest Emenyonu, trazendo ao debate a questão da biografia do autor. Reconhece que a crítica das literaturas africanas nos Estados Unidos da América não atribuía a devida importância à pesquisa biográfica. A polémica parecia antecipar a problematização filosófica da identidade pessoal do autor Africano e a história literária do romance africano em línguas africanas.
A problematização a história literária do romance africano em línguas africanas e as questões que suscita constituem o centro das interrogações – por exemplo: «O que define um romance étnico no contexto multicultural da Nigéria?» – para as quais Ernest Emenyonu procura respostas, no seu livro [História Literária do Romance Igbo. Literaturas Africanas em Línguas Africanas].
Ora, o discurso crítico «especificitário», tal como o categorizou Nouréini Tidjani-Serpos, não se esgota na tematização da «especificidade negro-africana» do romance africano. Na versão de Ernest Emenyonu, essa corrente apresenta-se como um pensamento que introduz uma silenciada agenda de pesquisa, relativamente aos problemas metodológicos das Literaturas em Línguas Africanas. A este propósito, apresentarei, na próxima conversa, breves notas sobre a reflexão do escritor, académico e crítico literário democrata-congolês, Pius Ngandu Nkashama.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 25 de Setembro, aqui republicado com a autorização do autor.
**Ensaísta e professor universitário