Cabo Verde passou a ter a lei que permite e regulamenta o transplante de órgãos humanos. Aos olhos dos doentes renais crónicos, trata-se de uma medida “muito positiva”, desde que se criem as condições para a sua efectivação, para não ser uma decisão “meramente política”. A NAÇÃO ouviu vários pacientes renais, que estando no país se dizem ansiosos, enquanto os que estão no exterior preferem, por ora, continuar na enorme lista de espera, alegando melhores condições de tratamento além-fronteiras.
A proposta de lei para a Regulamentação de Transplantes de Órgãos em Cabo Verde foi aprovada por unanimidade no Parlamento a 8 de Dezembro de 2023, um marco para a já longa história da medicina no país.
A 30 de Maio de 2024, o mesmo diploma, que estabelece o regime jurídico sobre a qualidade e segurança em relação à dádiva e colheita de órgãos, tecidos e células de origem humana, para fins de diagnóstico ou para fins terapêuticos ou de transplante, bem como as próprias intervenções de transplante, foi promulgado pelo Presidente da República, José Maria Neves.
Para esta reportagem A NAÇÃO tentou ouvir, a propósito, a Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS), sem sucesso, até ao fecho desta edição, duas semanas após o primeiro contacto.
Sem resposta também ficou o nosso pedido de entrevista à Ordem dos Médicos de Cabo Verde (OMCV), pelo que nos restou ouvir os pacientes, especialmente aqueles que lidam com a insuficiência renal crónica e que há muito vinham apelando à aprovação da lei do transplante.
“Uma coisa é a aprovação da lei e outra coisa a sua efetivação”
Valdir da Luz, diagnosticado com insuficiência renal em Fevereiro de 2018, considera a aprovação da lei do transplante de órgãos humanos algo de “muito positivo” para os pacientes na mesma condição que ele, com insuficiência renal crónica, que há muito esperavam por isso. Este cidadão acredita que se a lei se efectivar, as pessoas transplantadas irão de certeza desfrutar de uma melhor qualidade de vida, sobretudo as mais jovens.
Entretanto, depois de dois anos de hemodiálise no país natal, mais concretamente na cidade da Praia, Valdir resolveu prosseguir o seu tratamento em Portugal, sublinhando que “uma coisa é a aprovação da lei e outra coisa a sua efectivação”. E sobre este segundo aspecto diz acreditar que ainda não estão reunidas as condições para que o transplante passe a ser uma realidade em Cabo Verde.
“Teriam de ir cirurgiões externos para fazer a cirurgia e isso acarreta um custo enorme. Uma outra questão é que há uma série de medicamentos para o pós-transplante que Cabo Verde teria de suportar, além do acompanhamento pós transplante”, justifica.
Por outro lado, o nosso entrevistado fala de equipamentos adequados, referindo-se a uma série de investimentos com ajudas externas para que o transplante, pelo menos de rim, seja uma realidade no país.
“Creio que Cabo Verde ainda não dispõe de equipamentos para a realização de uma cirurgia desta envergadura, transplante de rim, por exemplo”. Ou seja, “ainda há uma série de investimentos a fazer antes de chegar a esse patamar e, ao meu ver, se Cabo Verde não tiver ajuda externa não conseguirá suportar esse custo”.
Em Portugal desde Novembro de 2020, Valdir acredita que, nestas como noutras coisas da vida, tudo começa com o sonho e que de seguida, com os pés bem assentes na terra, Cabo Verde haverá um dia de conseguir ultrapassar os obstáculos, para esta aprovação não ser “uma decisão meramente política”.
Questionado se regressaria ao país para realizar o transplante, sendo um doente renal na fila de espera há muitos anos em Portugal, Valdir da Luz responde.
“Para ser sincero eu não regressaria para fazer o transplante em Cabo Verde porque, até se criar todas as condições, são uns bons anos de estudo, e quando for efetivado terá uma primeira fase que é a fase experimental e eu não quero correr esse risco, até porque já estou há quase seis anos em diálise e não posso passar muito mais anos à espera. Sem contar que aqui em Portugal as condições são melhores em todos os aspectos”.
Inclusão dos doentes, um referencial a menos para Cabo Verde
Em relação ao tratamento em si, em Portugal também, Da Luz conta que é quase igual ao que se realiza no seu país de origem, Cabo Verde. “O que diferencia é que cá, em Portugal, os medicamentos são incluídos no tratamento, não temos de os comprar, e o acompanhamento social que também existe cá não existe em Cabo Verde. Logo, com os medicamentos em dia, temos uma maior estabilidade e até conseguimos trabalhar e levar uma vida mais próxima do normal”, explica, referindo que no país que a acolhe, Portugal, há uma série de condições que não existem em Cabo Verde.
“Para ser honesto, em Cabo Verde, a gente se sente excluída da sociedade por termos uma doença grave. Aqui, em Portugal, por lei, as empresas devem empregar uma certa percentagem de pessoas com deficiência e têm alguns benefícios do Estado para isso. Falo de trabalhos adaptados às condições do doente. Falta isto em Cabo Verde, a aprovação dessas leis de inclusão para que possamos levar uma vida melhor tanto a nível físico como psicológico”, complementa.
Entretanto, segundo explica, beneficiar das leis de inclusão e do suporte em geral é possível quando se tem algum suporte familiar no país de acolhimento. “Neste desafio, podemos ter todas essas regalias, mas se estivermos sozinhos, sem as pessoas mais próximas, tudo se torna mais difícil. Ainda bem que este não é o meu caso, pois, tenho pessoas ao meu lado que me fazem sentir muito melhor em todos os aspectos”, termina.
Uma luz no fundo do túnel para os doentes em tratamento no país
Se os cabo-verdianos, doentes renais crónicos em tratamento em Portugal, preferem continuar no estrangeiro enfrentando a enorme fila de espera para conseguirem um novo rim, a perspectiva dos que fazem o tratamento em Cabo Verde é diferente.
“Temos sonhado com transplante”
Depois de quase cinco anos de hemodiálise no Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente, Christianni Silva, 24 anos, é um dos doentes renais que prefere arriscar o transplante no arquipélago, depois de uma tentativa de evacuação falhada. Vê por isso a promulgação da lei do transplante como uma luz no fundo do túnel para todos que, na mesma situação, sonham com o transplante, um novo rim, melhores condições de vida.
“Todos nós que fazemos hemodiálise, dos mais novos aos mais velhos, temos sonhado com transplante de rim. Portanto, é de grande importância a aprovação da lei que permite o transplante de órgãos humanos no país. Sobretudo porque dizem que os doentes de mais idade não podem ser evacuados para tratamento em Portugal e esta é a única forma que nos chega para livrarmos das sessões de hemodiálise”, explica Christianni.
“Acredito que as condições para o transplante ainda não estão criadas mas creio que contaremos muito com a ajuda de Portugal. Das informações que temos, o teste de compatibilidade será feito em Portugal e o transplante será feito com uma equipa de médicos cabo-verdianos e portugueses”, salienta.
A espera pode ser menor em Cabo Verde
Para Christianni, tendo em conta a lista enorme de pessoas na fila para conseguir um novo rim, arriscar fazer o tratamento em Cabo Verde pode ter a rapidez como um ponto positivo.
“Eu aceitaria fazer o transplante aqui, até porque tentei ser evacuado para fazer o tratamento em Portugal e não consegui. Então, esta é a única chance que me resta. E creio também que aqui seria mais fácil conseguir um rim, tendo até familiares dispostos a doarem”, avança a nossa entrevistada que sendo maior de idade não arriscou tratamento em Portugal por não ter condições financeiras para arcar com as despesas que “não são poucas”.
Poucas informações, mas esperança renovada
Após a promulgação da Lei do Transplante em Cabo Verde, Christianni diz que os profissionais de saúde que lidam com os doentes renais no Hospital Baptista de Sousa adiantaram algumas informações que, mesmo não sendo “nada oficial”, renovaram a esperança dos pacientes.
“Falaram que ‘já já’ vão começar o transplante com a ajuda de médicos de Portugal pelo que podemos já falar com só nossos familiares dispostos a doarem o rim. Não foi nada concreto sobre como vai ser todo o processo até o transplante. Mas acho que quando esta lei se efetivar, teremos mais e melhores esclarecimentos”, acredita.
Recorde-se que numa reportagem feita pelo A NAÇÃO, edição nº 789 de 13 de Outubro de 2022, os doentes renais crónicos se manifestaram, uns esperançosos, e outros nem por isso, sobre a proposta de lei de doação, colheita e transplante de órgãos gratuita, entregue ao parlamento no início de 2022, aprovada pelo mesmo em Dezembro de 2023 e promulgado no dia 30 de Maio de 2024.
Leia na íntegra na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 878, de 27 de Junho de 2024