É jurista, poeta e ensaísta, e tido como um dos maiores escritores e intelectuais cabo- -verdianos da sua geração. O conhecimento profundo que tem da literatura das ilhas, segundo muitos, seria o suficiente para fazer de José Luís Hopffer Almada um grande professor universitário desta disciplina, em qualquer lugar. Actualmente, é o director executivo da ALMA – Associação da Língua Materna, em Portugal.
José Luís Hopffer Almada radicou-se em Lisboa já vai para mais de duas décadas. Veio para prosseguir a sua formação académica, com três pós-graduações, na área do direito. Aliás, esse foi um dos rumos da conversa, que decorreu na esplanada do Centro Cultural de Cabo Verde, situado na Rua de São Bento. José Luís recorda as suas hesitações nesse período particular da sua formação individual e profissional, sobre qual o lugar e o papel que a literatura deveria ocupar na sua vida. Algo, como ele afirma, o fez ‘vacilar’, nas suas escolhas, tendo optado, finalmente, do ponto de vista académico, pelo Direito.
No entanto, vai vivendo e convivendo com os maiores especialistas da matéria, a literatura, a grande paixão da sua vida, que o olham e o tratam como um deles, apesar que, como ele diz, para se ensinar literatura serem precisos ‘títulos’, o que ele não possui, como afirma – “para já”. Mas a satisfação pelas referências, permanentes, aos seus trabalhos, em teses de mestrado e doutoramento, nos debates em que vai participando, aqui e ali, confirmam esse conhecimento profundo que tem da literatura cabo-verdiana e dos assuntos culturais cabo-verdianos.
Isso acontece, igualmente, nas conferências e pelos colóquios, “ser difícil abordar a literatura cabo-verdiana sem estar a tropeçar nos seus ensaios”, como lhe confessam, volta e meia. Mas, diz JLHA, está no seu horizonte “a resolução dessa questão dos títulos”, dá ele a entender, embora sem grandes compromissos, “para não criar grandes expectativas e depois as coisas não se realizarem como pensamos”.
Mas, tempo perdido ou não, o certo é que nunca deixou de estudar, diariamente, estas questões da identidade cabo-verdiana e do direito, “que são uma ocupação permanente” na sua vida. Os inúmeros textos publicados desde os tempos da revista Fragmentos, na segunda metade da década de 1980, aos dias de hoje, fazem de JLHA, sem dúvida, uma referência.
Primeiros versos
A literatura entrou na sua vida bastante cedo, ainda no liceu da Praia, menino da Assomada, Santa Catarina, juntamente com outros irmãos que os pais mandaram estudar na capital. “Comecei a escrever depois do 25 de Abril, na época dos comícios políticos, em Cabo Verde, em que se declamavam poemas de combate, de Onésimo Silveira, Ovídio Martins, Mário Fonseca…”
Mas também, como recorda, “por imitação de um colega que escrevia poemas de amor”. Era o tempo dos poemas ainda curtos, simples e directos. Porque os poemas longos, aqueles que vão marcar parte do seu estilo, em algumas das suas “vozes poéticas”, como Nzé di Santyago, como ele afirma, resultam de rememorações da infância, em Santa Catarina, em Chã de Tanque, seu lugar de nascimento, mas também na Assomada.
É em Leipzig, na então República Democrática Alemã, RDA, em 1982, enquanto estudante de Direito, que JLHA vai mergulhar nas memórias dos seus amigos da Assomada, dos jogos de futebol, das inquietações sobre o paradeiro de cada um, nos locais para onde emigraram, das quais irá nascer o seu primeiro poema épico, Assomada Nocturna. E que Ondina Ferreira irá chamar de ‘olhar poético infanto-juvenil’, na sua primeira versão.
E é esse poema, emblemático na sua trajectória como autor, que inaugura outra prática de JLHA, que é fazer crescer os seus poemas, de cada vez que os revisita.
“Aconteceu quando a professora portuguesa Armandina Maia me pediu para lhe entregar uns poemas, para um livro pequeno. Peguei em Assomada Nocturna, na época apenas publicado em Cabo Verde, reli os poemas e desenvolvi algumas ideias à volta deles e acabou numa nova versão; reparei que faltavam algumas abordagens nele, como a escola, o desporto, e continuei, pensando na emigração, e deu uma terceira Assomada Nocturna. Depois, concluí que cada uma das temáticas podia dar um livro autónomo”.
O resultado foi o poema As Praianas, escrito em Lisboa, um outro sobre a emigração, Terra Longe Diáspora, outro sobre as elites, Temas do Saber e da Erudição, que resultou da impressão que o livro sobre a História da Imprensa em Cabo Verde, de João Manuel Nobre de Oliveira, causou nele. Este é o sentido da poética em efervescência, da obra de JLHA, em que o lado épico se casa com o nacionalismo, com a crioulidade, a cabo- -verdianidade, e o impulso para levar toda uma nação às costas de um poema.
Mesmo que para isso tenha de mexer no poema, sem qualquer receio de violar a sua autenticidade ou o sentimento gerado naquele momento. “É tudo uma questão de técnica e da metodologia empreendida”, explica JLHA. Mas, também existe uma explicação prática para isso, já que “escrever à mão, ou dar a alguém para dactilografar, causa gralhas, erros, quando não havia a tecnologia de hoje”. E ele acabava, muitas vezes, como afirma, por ‘refazer’ o poema, durante as correcções.
‘Vozes literárias’
O Direito foi a sua primeira profissão, logo ao regressar da RDA, e quando assumiu a direcção do gabinete dos assuntos jurídicos da secretaria geral do Governo. Aqui prestava apoio à chefia do executivo de Pedro Pires, tendo como colega o jornalista Manuel Delgado.
Mas é sobretudo como activista literário, coordenador do suplemento literário Voz di Letra – onde a geração Pró-Cultura, Filinto Elísio, JLHA, Dany Spínola, vai publicar pela primeira vez – e, mais tarde, responsável por algumas antologias, que JLHA se vai destacar. Primeiro como poeta e mais tarde como ensaísta, que lhe virá da prática de escrever sobre e analisar os textos que lhe chegavam para publicar.
E à pergunta, inevitável numa conversa do género, como gostaria de ficar na história da literatura cabo- -verdiana, JLHA não tem opção, “como poeta e como ensaísta”, responde. Se bem que, como nos explica, nos ensaios que escreve fala sobre o trabalho dos outros. A poesia é diferente, é mais sobre as emoções e sentimentos.
“É uma questão de linguagem, os assuntos, por vezes, são iguais, mas com linguagens diferentes. Uma mais científica e racional, de apelo à razão e explicativa. Outra mais da emoção e comoção.” Mas é claro que a obra poética é mais complexa, com as suas diferentes “vozes literárias”, que convoca, de acordo com os assuntos que trata.
Se a ‘voz’ de Nzé de Sant’y Ago, o da Assomada Nocturna, das rememorações e do telurismo, Erasmo Cabral de Almada, outra das suas ‘vozes’ – esta ‘muito mais crítica, ácida’ – é de outro fôlego, capaz de produzir ‘Australidade’ “o maior poema jamais escrito sobre África, maior mesmo que o de Aimé Césaire, ‘Cahier d’Un Retour au Pays Natal’”, explica JLHA. “Uma voz crítica da contemporaneidade, ao contrário de Nzé, que apesar das denúncias das mágoas do passado, acredita que ainda tudo é possível”.
É o poeta consciente das suas qualidades, enquanto escritor, que se coloca a si próprio entre os mais importantes do panorama literário cabo-verdiano. Mesmo entre os possíveis candidatos nacionais ao Prémio Camões, indicando, como faz, os nomes de Dina Salústio, José Luiz Tavares, Mário Lúcio Sousa, Osvaldo Osório, Jorge Carlos Fonseca.
Família ilustre
Uma autoconfiança que vem da sua forte personalidade. “São sentimentos especiais, individuais, os poetas cabo-verdianos mais recentes, costumamos dizer, são todos ‘ególatras’, o que é mais forte do que megalomania e egoísmo.”
Nisso, no seu caso, há ainda o nome da família, os Hopffer Almada, que os fazem ser vistos com alguma curiosidade, por causa do apelido sonante. “Soube há pouco tempo, através do livro do doutor Santa Rita Vieira, que um dos nossos ascendentes já era escritor conhecido na Alemanha, no século XVII ou XVIII. E por isso, foi-lhe atribuído o título de barão Von Hopffer. Depois, ainda há o doutor Francisco Frederico Hopffer, considerado, também por Santa Rita Vieira, o melhor médico cabo-verdiano de sempre, que fez o doutoramento em Bruxelas e ficou conhecido, na época, pelo combate às epidemias. E terá sido o primeiro escritor cabo-verdiano, com um livro sobre o tema Cabo Verde, publicado em Cabo Verde, um relatório sobre a ilha do Maio, para onde foi desterrado pelo seu papel na implantação do Liberalismo em Cabo Verde”.
Mas a ideia da ‘fidalguia’ da família não recua tão longe, já que estes dados só há pouco foram revelados. Mas vale ainda para André Álvares de Almada, André de Ornelas, João José António Frederico Hopffer, autores de livros e de viagens marcantes para as suas épocas, exilados e combativos. Assim, a noção de pertença do poeta e ensaísta a uma burguesia rural, de morgado, da família originária de Pombal, ali perto da Ribeira dos Engenhos, pai influente, vem-lhe da casa paterna, da aldeia onde nasceu ‘à sombra do sobrado’. O avô, sobrinho-neto de Francisco Frederico Hopffer, é o primeiro Hopffer que se casa com uma cabo-verdiana mestiça, a avó Susana, natural do Fogo. Mas, a história de JLHA começa em Assomada, para onde foi com apenas quatro anos.
Após um período de nove anos como responsável cultural da Associação Cabo- -verdiana de Lisboa, e como parte dos corpos sociais, incluindo presidente, JLHA deixou a ACL. A sua marca também ficou, pelas muitas actividades literárias e culturais que promoveu, e pela visibilidade que estas trouxeram à Associação.
Joaquim Arena
Leia na íntegra na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 876, de 13 de Junho de 2024