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Cabo Verde poderá ser uma potência biotecnológica

Por: Deisy Rocha* e Fredilson Melo**

Cabo Verde é um país que sofre com a escassez de água, mesmo estando rodeado de oceano. Por isso, detém uma fraca flora e fauna. No entanto, essas pequenas flora e fauna tornam o país num caso único no que toca a recursos biológicos (plantas, animais e microorganismos). E esses verdadeiros tesouros da era moderna podem tornar Cabo Verde numa potência biotecnológica.

Plantas medicinais

Cerca de 80% da biodiversidade mundial continua inexplorada no que toca a aplicações medicinais. Por outro lado, dezenas de compostos medicinais têm sido isolados de plantas, como a aspirina da planta Salix, por exemplo. No entanto, apenas 1 a 5% das plantas foram estudadas cientificamente e possuem potencial terapêutico.

Em Cabo Verde, o uso de plantas medicinais é uma prática comum. Recentemente, investigadores descobriram que plantas endémicas como a erva-doce, a losna (ou lorna) (Artemisia gorgonum) e o lantisco (Periploca chevalieri Browicz), têm propriedades farmacêuticas no controle da dengue, paludismo, tumor, e tratamento microbiano. 

Em Abril de 2023, a cientista Doutora Anyse Pereira e colegas publicaram um estudo sobre 24 plantas nativas utilizadas na medicina tradicional em Santiago. Duas delas mostraram potencial contra a diabetes. “Estes resultados apontam que estas plantas podem ser melhor estudadas para perceber como podem ser usadas como fontes farmacológicas”, afirma a investigadora.

Plantas para resiliência e biocombustível

No seu trabalho, a Doutora Pereira também descobriu que plantas do género Diplotaxis, pertencentes à família Brassicaceae (à qual pertencem repolho e brócolis), adaptaram-se eficazmente às ilhas, crescendo em condições diversas como “solo vulcânico (no Fogo), areia (um solo salino e muito seco) (no Sal) e altitudes elevadas (Santo Antão)”. 

Num país com apenas 10% de solo arável e dependente, maioritariamente, da agricultura de sequeiro, plantas resistentes à seca e solos pobres são vantajosas. Uma dessas plantas é a purgueira.

A purgueira (jatropha curcas) tem diversas aplicações, inclusive como potencial fonte de biodiesel. Um estudo sobre a produção de biodiesel a partir da purgueira na ilha de Santiago, alcançou um rendimento de até 35% na extração de óleo das sementes. O uso da purgueira poderá significar um grande benefício económico e ambiental para o país.

Um mar de oportunidades biotecnológicas

Cabo Verde é um arquipélago composto por 1% de terra e 99% de mar. O vasto território marinho nacional continua pouco explorado, sendo as principais atividades econômicas desenvolvidas a pesca e o turismo. No entanto, estudos recentes revelaram que o país possui também um grande potencial biotecnológico marinho.

Em 2016, o investigador Doutor Jorge Livramento Brito Neves publicou a descoberta de um composto com efeito anestésico. Ele descobriu esse composto no veneno de um caracol marinho que coletou em Cabo Verde, durante o seu doutoramento. Além disso, ele descobriu outros compostos com propriedades medicinais. 

O mercado de anestésicos atingiu cerca de 30 bilhões de dólares em 2022, prevendo-se um aumento de pelo menos 10 bilhões nos próximos 5 anos. É relevante destacar que um dos caracóis estudados é uma espécie exclusiva de Cabo Verde, especificamente da ilha do Sal. 

O valor dos microrganismos marinhos 

Desde a descoberta da Penicilina, derivado do fungo penicillium notatum, os microrganismos tornaram-se fundamentais para a medicina moderna, assim como para a bioindústria. Os microorganismos, particularmente os marinhos, têm sido investigados para diversas aplicações, incluindo farmacêutica, cosmética, alimentícia e outras. 

Cabo Verde possui microorganismos com esse potencial. Um estudo de 2019 mostrou que existem cianobactérias no país capazes de regenerar a pele e impedir o crescimento de células cancerígenas. Além disso, identificou-se pela primeira vez um novo gênero de cianobactérias, nunca antes identificado. 

Os factos descritos mostram mais uma vez que Cabo Verde possui uma biodiversidade que precisa de ser investigada. Adicionalmente, a pesquisa de compostos derivados de microorganismos em Cabo Verde poderá abrir portas para outras indústrias, para além da farmacêutica.

“Um estudo de 2019 mostrou que existem cianobactérias no país capazes de regenerar a pele e impedir o crescimento de células cancerígenas.”

Economia azul com base na ciência

O Ministério do Mar, através da Direção Nacional de Pesca e Aquacultura, tem criado ferramentas que apoiam o desenvolvimento da economia azul nacional, com o objectivo de promover as economias marítimas e a valorização dos recursos oceânicos.

Segundo a responsável pelo laboratório oficial de produtos de pesca, Araci Rodrigues, ‘’a Direção Nacional de Pesca e Aquacultura possui um laboratório que dá apoio à aquisição da certificação da qualidade, principalmente de pescados destinados à exportação’’. A equipa do laboratório realiza análises químicas e biológicas que asseguram a qualidade dos produtos. 

Ainda de acordo com Araci Rodrigues, o laboratório oficial das pescas foi montado e pensado para diferentes áreas de atuação. Por isso, neste momento Cabo Verde tem uma infraestrutura onde seria possível desenvolver projetos de investigação biotecnológicas. No entanto, atualmente, a DNPA não desenvolve este tipo de projetos nesse laboratório. 

Não obstante, a técnica Araci Rodrigues lembra que este ano, na Ocean Week, a DNPA desenvolveu uma iniciativa para demonstrar a produção de carbonato de cálcio a partir da maceração de conchas recolhidas nas praias.  

‘’Cabo Verde tem um excelente potencial para a produção deste tipo de carbonato de cálcio, já que em diversas ilhas existem jazidas de búzios que são autênticas montanhas e que até então não são aproveitadas’’. Este produto pode ser aplicado em diferentes áreas, como construção civil, agropecuária, e na indústria cosmética e alimentar. “No entanto, em todos os casos seriam necessários estudos mais aprofundados’’, afirma a técnica.

Preservação dos recursos naturais

Segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais, 78% das plantas endémicas de Cabo Verde estão ameaçadas, com previsão de aumento desse número nas próximas décadas. Das 24 plantas endêmicas do trabalho da Anyse Pereira, 13 estão ameaçadas e 2 estão em perigo crítico de extinção. 

Portanto, é imperativo esforços de conservação, como recomendou Anyse Pereira aos governantes nacionais durante o seu doutoramento. Ainda segundo a cientista, há muita fragilidade na proteção dos materiais biológicos de Cabo Verde, havendo o risco de retirada ilegal de amostras biológicas do país. 

Idealmente, Cabo Verde deveria investir na investigação/exploração dos seus próprios recursos biológicos, dada a evidência de recursos humanos qualificados no país e na diáspora, assim como uma capacidade logística em desenvolvimento. Esta abordagem não exclui, no entanto, colaborações internacionais, como o país tem mantido até ao momento. 

*Doutora em Ciências da Saúde, Universidade do Minho
**Doutorando em Biologia, Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier

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