Por: Luís Kandjimbo**
A história da crítica literária praticada em África permite hoje a realização de estudos sistemáticos, além de classificações tipológicas e reflexões teóricas. Para o efeito, julgo ser possível operar com os seguintes critérios metodológicos: 1) perspectivas teóricas dominantes e sua originalidade; 2) temas preferenciais de avaliação estética das obras literárias africanas; 3) características estilísticas e formais do discurso crítico; 4) meios e publicações de divulgação; 5) contextos institucionais da sua prática.
À luz desses critérios, a discursividade crítica cultivada pelo beninense Nouréini Tidjani-Serpos (Porto Novo,1946), na imagem, enquanto poeta, crítico literário e professor de Literaturas Africanas, pode ser exemplo do que se definiria como objecto de sistematização. Não é meu propósito esgotar a análise do discurso crítico de Nouréini Tidjani-Serpos. Sem recorrer aos critérios referidos cumulativamente, talvez seja interessante combinar apenas alguns deles e seleccionar dois tópicos: a perspectiva de definição da crítica literária e o seu ponto de vista sobre o papel desempenhado pelos «intelectuais ocidentalizados» na génese e desenvolvimento do romance africano.
Crítico literário engajado
Nouréini Tidjani-Serpos realizou os seus estudos universitários em França, onde obteve o Doutoramento de Terceiro Ciclo pela Universidade de Paris VIII, em 1973, e o Doutoramento de Estado pela Universidade de Lille III, em 1987. Entre 1972 e 1991, foi professor de Literatura Comparada Africana na Universidade de Paris VIII, Universidade Nacional do Benin e Universidade de Benin City, na Nigéria. É um pan-africanista poliglota com competência em quatro línguas africanas: Yoruba, Fon, Éwé e Goun. Exerceu vários cargos de gestão universitária, tendo sido Chefe do Departamento de Literatura Moderna, Presidente do Conselho de Administração da Escola de Aplicação Pedagógica da Universidade Nacional do Benin (1982-1985) e Presidente da Associação de Literatura Moderna da Nigéria (1980-1982). Foi igualmente co-director da revista «Nigerian Journal of Humanities» [Revista Nigeriana de Humanidades], editor do «Journal of the Literary Society of Nigeria» [Revista Nigeriana de Estudos Literários] e membro do conselho editorial da revista «Présence Africaine»[Presença Africana].
Movido por um espírito engajado e compromisso ético, participou no processo de democratização do Benin com uma intervenção activa nos trabalhos da Conferência Nacional Soberana que conduziu o seu País à transição democrática. Após a eleição do novo Presidente da República assumiu as funções de Conselheiro para a Cultura e Investigação Científica. Desempenhou cargos na diplomacia cultural multilateral. Por isso, na UNESCO foi Ministro-Conselheiro, posteriormente Chefe da Missão Permanente do Benin. A partir de 1998, esteve ao serviço daquela agência da ONU, na qualidade de Director-Geral Adjunto, responsável pelo Departamento África.
Reflexão crítica
Excluindo as suas teses de Terceiro Ciclo «La Négritude Senghorienne: Étude Critique» [A Negritude Sengoriana: Estudo Crítico],(1973), e Doutoramento de Estado, nos seus formatos institucionais originais, o núcleo duro da obra de Nouréini Tidjani-Serpos é constituído por dois volumes com o título: «Aspectos da Crítica Africana». Destes, o primeiro volume, publicado em 1987, reúne textos produzidos durante as décadas de 70 e 80 do século XX. O segundo volume, publicado em 1996, é inteiramente dedicado à história do campo intelectual africano e do romance negro-africano. Merece especial referência o capítulo II deste volume. Nele Nouréini Tidjani-Serpos desenvolve uma fina reflexão acerca do que designa por «discurso crítico dos ensaístas negro-africanos sobre o romance». Pode dizer-se que as propostas de Mohamadou Kane (1933-1995) encontram um relevante complemento na argumentação aí desenvolvida.
No texto escrito em homenagem a Alioune Diop (1910-1980), fundador da editora e livraria «Présence Africaine» [Presença Africana], Tidjani-Serpos fornece referências relativas a um dos momentos mais importantes da sua actividade de intervenção crítica, ao serviço da Sociedade Africana de Cultura de que o eminente intelectual senegalês era presidente. Aconteceu em 1971, quando foi entrevistado por Alioune Diop para integrar a equipa da organização do Colóquio de Yaoundé de 1973. Além de artigos publicados em revistas especializadas, a criação poética faz igualmente parte das suas ocupações literárias.
A leitura da produção crítica de Nouréini Tidjani-Serpos chama a atenção para as características estilísticas e formais que constituem um denominador comum dos discursos críticos africanos. Nos «Aspectos da Crítica Africana», observa-se um objecto de estudo que se analisa em três registos: o ritmo fragmentário, a tematização do acto criativo pelos próprios autores e o pendor sistemático. Daí derivam três tipos de discurso crítico: ensaio crítico iterativo, ensaio metadiscursivo de autor e o ensaio crítico de sistematização.
Tipos de ensaio crítico
O ensaio crítico iterativo visa a divulgação de uma prática hermenêutica e a defesa de uma avaliação estética associada. No plano argumentativo, distingue-se pelo recurso à isotopias semânticas vinculadas a problemáticas literárias africanas. Os registos formais do estilo não configuram o tipo de discurso mimético equivalente à reprodução de modelos europeus. O segundo tipo é o ensaio crítico que veicula o ponto de vista dos escritores sobre a sua própria obra ou a literatura de um modo geral.
Com o ensaio crítico de sistematização realiza-se uma progressiva reflexão teórica literária das literaturas africanas. A sua prática ocorre em contextos institucionais académicos e a sua divulgação obedece a estratégias editoriais destinadas a públicos específicos. É o caso das dissertações e teses de doutoramento que depois são convertidos em edições comerciais, bem como de revistas especializadas com arbitragem científica de pares.
Se tivermos em atenção a história literária africana, especialmente a crítica da literatura oral contemporânea e a crítica da literatura africana contemporânea escrita em línguas europeias, podemos concluir que os críticos literários Africanos podem ser classificados como cultores de um e outro tipo ou dos dois tipos, simultaneamente. A título ilustrativo, entre os críticos que praticam o ensaio crítico iterativo incluem-se os seguintes: o nigeriano Abiola Irele (1936-2017), o sul-africano Lewis Nkosi (1936-2010), o angolano Mário Pinto de Andrade (1928-1990). Por sua vez, entre os cultores do ensaio metadiscursivo de autor, figuram o nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), o ganense Koffi Awoonor (1935-2013), o congolês Jean-Baptiste Tati Loutard (1938-2009) e o queniano Ngugi wa Thiong’o. O ensaio crítico de sistematização é produzido por professores universitários que, não dando forma editorial de livro aos artigos, comunicações em eventos científicos ou outras publicações avulsas, preferem publicar apenas livros com uma unidade estrutural e sistemática. Tais são os casos do congolês Jean-Pierre Makouta Mboukou (1929-2012), o nigeriano Isidore Okpewho (1941-2016) e o democrata-congolês Pius Ngandu Nkashama.
Critério de aceitabilidade
Na comunicação apresentada ao Colóquio de Yaoundé de 1973, Nouréini Tidjani-Serpos privilegia uma abordagem analítica da crítica literário e da função crítica no contexto geral da literatura africana. Uma das suas preocupações consiste em definir o perfil do crítico literário. Semelhante motivação estratégica em matéria de definições terminológicas não é muito comum nos meios académicos da tradição crítica de influência francesa. Contudo, não sendo isso, necessariamente, uma fatalidade, Tidjani-Serpos começa por afirmar que a actividade do crítico africano deve permitir uma determinação racional do tipo de conceitos susceptíveis de orientar uma metodologia crítica não-repetitiva. Acrescenta, mais adiante, que a prática da crítica africana deve evitar a ambiguidade inerente à palavra crítica, afastando-se de tentações da hagiografia e anátemas. Para tal, é necessário clarificar os fundamentos da aceitabilidade da própria crítica literária, quando são aplicadas teorias consideradas racionais, ao abordar a obra literária africana.
Não é sem razão que Nouréini Tidjani-Serpos admite que, em diferentes períodos históricos, as realidades culturais africanas deixam apreender a formação de três tipos de críticas especializadas e respectivos praticantes: a crítica da literatura oral pré-colonial, a crítica da literatura oral contemporânea e a crítica da literatura africana contemporânea escrita em línguas europeias.
Por outro lado, Tidjani-Serpos considera que ao elaborar a sua teoria o crítico literário deve suscitar o problema do público-leitor, construindo o seu próprio conceito de público africano cuja definição deve dar lugar à desmistificação da transparência da obra. Situa-se aí a questão controversa da relação que se estabelece entre o editor europeu e o escritor Africano. Em tais circunstâncias, a reputação do escritor é regulada pelo gosto do público europeu que o editor procura satisfazer, exigindo-se a acomodação dos autores às expectativas de quem garante a sorte da obra, ao nível da edição e da leitura.
Primeiras correntes
Como se sabe, os ataques aos fundamentos dos discursos ocidentais dominantes surgem inicialmente nos países africanos que têm o inglês como língua oficial. A primeira reacção efectiva manifestou-se através da recusa do que se entende por «universalismo», reivindicado por discursos eurocêntricos. Por isso, os instrumentos conceptuais são igualmente objectos de suspeita, numa apologia da descolonização da crítica literária.
Sobre o tópico em epígrafe, acompanhemos a argumentação de Nouréini Tidjani-Serpos. Em 1978, ele sustentava categoricamente a ideia segundo a qual «a crítica literária africana existe e não é sucedâneo do que se faz no estrangeiro». Donde se conclui que aquilo a que considerava «verdadeira crítica literária» se tinha desenvolvido após as independências africanas, a que se seguira as universidades.
No campo que se constituiu, Tidjani-Serpos identificava três condicionalismos, nomeadamente, o institucional, o estratégico e o metodológico. Nesse contexto, ele entendia que tinham sido decisivas as reacções dos críticos Africanos que operavam no referido campo. Partindo das manifestações de um pensamento autónomo, no espaço geopolítico em que o francês é língua oficial, o crítico literário beninense admitia a existência de duas correntes: a escola sengoriana cujas âncoras eram a Universidade de Dakar e a figura de Léopold Senghor (1906-2001) e a escola meloniana, com sede na Universidade de Yaoundé, sendo seu representante o professor Thomas Melone (1934-1996). No dizer de Tidjani-Serpos, a crítica sengoriana distinguia-se pelos seus dois traços caracterizadores: a) a vocação hagiográfica; e b) o não-engajamento político. O primeiro, fundado no conceito de Negritude, conduzia ao empolamento da autenticidade do sujeito Africano e a condenação pura e simples do discurso ocidental. O segundo traduzia a concepção que negava a função política atribuída à crítica literária. Nouréini Tidjani-Serpos referia-se à escola meloniana da crítica literária, atento aos seus fundamentos: o princípio da vinculação política da crítica e da especificidade metodológica. É uma concepção que atribui à obra literária uma vocação reveladora da visão do mundo, enquanto produto de um sistema geral de valores civilizacionais. Donde, tal como sustenta Thomas Melone, a finalidade da crítica literária africana deve consistir em apresentar as obras mais significativas, tendo em conta a visão do devir africano, de acordo com a originalidade do seu ritmo, do movimento das línguas e das leis do património cultural universal.
Crítica do romance
No segundo volume dos «Aspectos da Crítica Africana», tal como sublinhei, Nouréini Tidjani-Serpos dedicou um capítulo ao discurso crítico dos ensaístas Africanos sobre o romance. Trata-se de um tipo de discurso cuja classificação tem bases em critérios de legitimação institucional académica. Por conseguinte, avalia as opções metodológicas africanas concentrando-as em três correntes: a crítica especificitária; a crítica linguística dos autores; e a crítica social dos autores.
Aquilo a que designa por «crítica especificitária» é caracterizada como um discurso endógeno preocupado com a «especificidade negro-africana» do romance africano. O livro do crítico camaronês Thomas Melone, ««Mongo Beti: L’homme et le destin»[Mongo Beti: O Homem e o Destino] é um exemplo disso. O outro cultor do discurso «especificitário» é o crítico nigeriano Ernest Emenyonu.
Já a crítica linguística e a crítica social dos autores podem ser representadas por dois escritores, Ngugi wa Thiong’o e Wole Soyinka.
Portanto, as propostas formuladas por Nouréini Tidjani-Serpos, em matéria de história da crítica literária, deixam pistas interessantes. Neste olhar diacrónico da crítica literária, suas correntes e protagonistas, o discurso crítico do nigeriano Ernest Emenyonu que explora a história do romance escrito em Igbo, uma das línguas da Nigéria, parece ser um bom tópico para a próxima conversa.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 18 de Setembro, aqui republicado com a autorização do autor.
**Ensaísta e professor universitário