Por: Luís Kandjimbo*
Venho propor um breve retrato de Mohamadou Kane (1933-1995), o filósofo da literatura e crítico literário senegalês, proponente de rupturas em matérias respeitantes à história literária, teoria e interpretação do romance africano. O meu primeiro contacto com a sua obra ocorreu na década de 80, quando li um texto seminal, publicado na revista «Présence Africaine», numa das suas edições de 1966. O título do artigo, «L’Ecrivain Africain et son Public» [O Escritor Africano e o seu Público], exprimia já uma originalidade na problematização. Enunciava-se aí uma hipótese teórica cuja tematização conduzia a uma história do romance africano, indelevelmente marcado por metamorfoses das tradições culturais. Seguiu-se a leitura de um outro texto importante. Estou a referir-me à sua comunicação, inserida nas actas do colóquio de Yaoundé, «Sur la Critique de la Littérature Africaine Moderne» [Sobre a Crítica da Literatura Africana Moderna]. Mas, as ideias que conformam os pilares do seu pensamento estão plasmadas no livro de quinhentas e vinte páginas, «Roman Africain et Tradition» [Romance Africano e Tradição], publicado em 1982. O corpus do seu objecto de estudo forma um universo de oito dezenas de romances africanos.
Carreira académica
Apesar da formação universitária em letras, Mohamadou Kane iniciou a sua carreira como diplomata, tendo sido primeiro secretário da Embaixada do Senegal em Washinghton e da Representação Permanente junto da ONU, onde trabalhou com o escritor e embaixador Ousmane Socé Diop (1911-1973). Após a defesa da tese de Doutoramento de Terceiro Ciclo, em 1967, «Les contes d’Amadou Coumba. Du conte traditionnel au conte moderne d’expression française» [Os contos de Amadou Coumba. Do conto tradicional ao conto moderno de expressão francesa], consagrada ao trabalho de recriação da tradição oral do escritor senegalês Birago Diop (1906-1989), passou a responder aos apelos da vocação académica, tornando-se especialista do conto e da narrativa tradicional. A obra-prima de Mohamadou Kane é a tese de Doutoramento de Estado, «Roman Africain et Tradition» [Romance Africano e Tradição], defendida em 1978 na Universidade de Lille III e publicada em 1982. Com essa tese, Mohamadou Kane consolidava a sua autoridade no domínio dos estudos literários e da crítica literária africana. O tema da tradição nas literaturas africanas ia deixando de ser reserva da antropologia africanista ocidental. Adquiria um estatuto que até aí não tinha na crítica do romance africano. Deste modo, compreende-se que o ensino das literaturas africanas constituísse igualmente um dos maiores campos da sua intervenção.
Mohamadou Kane exerceu diferentes cargos na Universidade Cheikh Anta Diop e desenvolveu uma intensa actividade científica e cultural. Foi Director do Departamento de Letras Modernas, Decano da Faculdade de Letras, além de ter sido responsável de várias revistas científicas, coordenador do suplemento de Artes e Letras do jornal «Soleil» de Dakar, e presidente do Gabinete Senegalês dos Direitos do Autor.
Em vida, cultivando uma conduta profundamente discreta, Mohamadou Kane gozou de uma indiscutível reputação académica internacional. Enquanto membro da Associação para o Estudo das Literaturas Africanas, que tem a sede em Paris, pude testemunhar as homenagens e o prestígio que lhe eram reservados. Ele frequentava regularmente os meios académicos e eventos científicos no continente africano e fora dele, nomeadamente, Europa, América e Ásia.
Agendas geracionais
Para o crítico literário senegalês, os temas das obras literárias, o problema da leitura e do público-leitor africano apresentavam indiscutível mérito. Deles emanavam questões sobre a interpretação dos sentidos da obra literária do autor africano, exigindo o reconhecimento de comunidades interpretativas e correspondentes valores de uma específica apreciação estética.
Numa perspectiva pluralista, esse pensamento de Mohamadou Kane é partilhado por três outros críticos de duas gerações diferentes, o sul-africano Lewis Nkosi (1936-2010), o democrata-congolês Georges Ngal e o nigeriano Sunday O. Anozie (1940 – 2001).
Atento às assimetrias da literatura sul-africana escrita em inglês e afrikaans, ainda no exílio, o sul-africano Lewis Nkosi, criticava as atitudes de escritores e leitores perante a pervivência das políticas culturais e educativas do apartheid. Num texto publicado em 1998, Lewis Nkosi qualificava esse fenómeno de natureza histórica como manifestação do «estatuto colonial da literatura negra sul-africana» que, no contexto pós-apartheid, deveria ser superado. Em seu entender, tal possibilidade não era discernível, num campo dominado por escritores brancos, sendo aos escritores negros reservado um lugar marginal. Para Lewis Nkosi, o mais forte dos indícios disso era o isolamento, observável perante um dos mais fecundos debates contemporâneos que se desenvolvia em torno de teorias culturais sobre o «pós-modernismo».
Georges Ngal é outro filósofo da literatura e o crítico literário com o qual Mohamadou Kane partilha temas de reflexão, especialmente a relação entre a crítica literária, a literatural oral e a tradição. O democrata-congolês, Locha Mateso, autor de uma das mais importantes sínteses históricas da metacrítica literária africana, «La Littérature Africaine et sa Critique» [As Literaturas Africanas e sua Critica] (1986), classifica as propostas analíticas de ambos os críticos e agrupa-as sob o signo do «modelo tradicional». Ao fazê-lo, reduz o pioneirismo de Mohamadou Kane às posições críticas publicadas em artigos de revistas, numa manifesta subavaliação do modelo analítico desenvolvido na sua tese de Doutoramento, onde aprofunda e renova as posições anteriores. Do meu ponto de vista, o «modelo tradicional», assente na importância da literatura tradicional, a que se refere Locha Mateso, não corresponde rigorosamente às conclusões a que chega o professor da Universidade de Dakar.
Na parte final do seu livro, Mohamadou Kane dá destaque ao diálogo intertextual que mantém com Sunday O. Anozie, autor de «Sociologie du Roman Africain» [Sociologia do Romance Africano], 1970, quando o realismo no romance africano é o tópico. De facto, a influência da realidade social sobre a criação literária em África, ou seja, o realismo, constitui uma trave-mestra comum. Anozie não tem dúvidas a este respeito, ao afirmar que «o conflito entre a tradição e o modernismo é um dos temas dominantes no romance da África Ocidental».
Contra o paternalismo europeu
Em dois artigos de charneira, publicados num intervalo de três décadas, entre 1968 e 1991, respectivamente, «Recherche et Critique» [Investigação e Crítica], e «Sur l’histoire littéraire de l’Afrique subsaharienne francophone » [Sobre a História Literária da África Sub-sahariana], o pensamento de Mohamadou Kane revela uma agenda dinâmica. Surgem tópicos que se renovam. Dois deles dizem respeito a metodologias da nova história literária africana e fundamentos de uma crítica literária autónoma que não deveria ter inspiração no paternalismo europeu. A autonomia implicava a formação de novas gerações de críticos africanos, dotados de meios que garantissem a libertação de uma tutela estrangeira cada vez mais onerosa.
Mohamadou Kane invocava a necessidade de introduzir políticas de incentivo à criação de obras autenticamente africanas, através de dispositivos editoriais, criação de prémios literários, atribuídos por júris cuja decisão devia obedecer a critérios característicos do gosto e aspirações do público africano. Por outro lado, considerava que a missão do crítico não consistia simplesmente em facilitar a venda das obras literárias. O crítico devia comportar-se como mediador entre o escritor e seu público.
A avaliação que Mohamadou Kane fazia do estado da crítica literária africana conduziam-no a conclusões que não correspondiam à nobreza da missão. Por essa razão, lamentava a ausência de profundas reflexões, aquelas que deviam permitir a determinação da natureza e as tarefas da crítica. Chamava a atenção para o isolamento revelado pela inexistência de ecos dos debates interdisciplinares que se desenvolviam na Europa.
Macrotema, temas e sub-temas
O modelo analítico de Mohamadou Kane tem a sua máxima expressão na já mencionada tese de Doutoramento de Estado. Na verdade, trata-se de uma avaliação estética e teorização do texto romanesco num contexto em que se revelava pertinente realizar o estudo da «continuidade relativa» do discurso tradicional oral e do discurso escrito, do conto e do romance. Por conseguinte, aos olhos de Mohamadou Kane era urgente estudar as formas e condições do discurso narrativo no conto e no romance. Tal conclusão ganhou robustez, quando o crítico literário senegalês identificou uma convergência de perspectivas em propostas de outros críticos literários Africanos, designadamente, o camaronês Thomas Melone (1934-1996), Emmanuel Obiechina e Joseph Okpaku.
Com a periodização da história do romance africano, o crítico literário senegalês selecciona os temas desenvolvidos com o propósito de explorar o macrotema da tradição. Nos romances publicados entre 1950 e 1960 detecta a denúncia da situação colonial. É o que acontece na obra de um senegalês e dois escritores camaroneses, por exemplo, «A Aventura Ambígua», de Cheikh Hamidou Kane, «O Pobre Cristo de Bomba», de Mongo Beti (1932-2001), «Uma Vida de Boy» e «O Velho Negro e a Medalha», de Ferdinand Oyono (1929-2010). Para Mohamadou Kane, a referida denúncia da situação colonial é triplamente subversiva: contra a autoridade, a família e as crenças. Nos romances publicados em períodos seguintes, a denúncia vai constituir a base da relação que estabelecem os diferentes pares dialécticos: tradicionalismo/modernismo; progresso/anti-progresso; vida rural/vida urbana; comunitarismo/individualismo.
A exploração do macrotema da tradição, tal como se propõe Mohamadou Kane, aponta para a possibilidade de o intérprete encontrar uma densa malha de temas transversais sobre os quais ele se debruça na terceira parte do seu livro, reservada ao tratamento da tradição e suas perspectivas. No seu horizonte de interpretações, o crítico senegalês vai ocupar-se das tensões e dos conflitos que decorrem das dinâmicas daqueles pares dialécticos. Assim, analisa os conflitos de gerações, a condição da mulher, o conflito religioso, o conflito cultural. Segue-se o capítulo em que Mohamadou Kane inventaria as três soluções veiculadas pelo romance africano: 1) Abandono da tradição; 2) Conciliação de culturas; 3) Retorno e renovação.
Conclusões
Ao chegar ao fim da sua obra-prima, peça fundamental na história da crítica literária africana, Mohamadou Kane enuncia as conclusões.
Em primeiro lugar, considera que foi possível verificar a hipótese de partida respeitante ao lugar central que o macrotema da tradição ocupa no romance africano.
Em segundo lugar, o surgimento e desenvolvimento do romance africano implicaram a revalorização da tradição.
Em terceiro lugar, os autores de romances dão conta da actualidade da tradição através dos conflitos, significando o seu questionamento.
Em quarto lugar, progressivamente, o macrotema da tradição é substituído pela tematização do debate político.
Em quinto lugar, o recuo da tradição dá lugar à valorização da moral da tradição, reforçando a ideia do vazio e do desconhecido.
*Ensaísta e professor universitário. Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 11 de Setembro e aqui republicado com a autorização do autor.